Tem circulado no Facebook uma espécie de corrente (que me
foi repassada) pedindo que a gente cite 15 autores que nos marcaram. Tempos atrás fiz uma dessas listas, e uma
amiga, cuja opinião respeito muito, chamou minha lista de machista, porque só
citei autores homens. Eu nem tinha reparado. Claro que não foi proposital. Como a maior parte dos preconceitos, meu
machismo deve ser inconsciente, embutido no piloto automático. O que não me
impede de ter grande carinho e gratidão por cada escritora da lista abaixo (que
poderia ser maior, evidentemente). Vamos às damas, portanto.
1. Agatha Christie. Era a autora preferida de minha avó
Clotilde. Os primeiros dos mais de 30 livros seus que li foram, aos dez ou onze
anos, O Caso dos Dez Negrinhos e O Assassinato de Roger Ackroyd. Com ela
me acostumei a admitir o maquiavelismo por trás das aparências bonachonas, das
reputações inatacáveis dos cidadãos acima de qualquer suspeita. E aprendi que
às vezes quem está contando a história do crime não é um narrador neutro, é o próprio
criminoso. (Vale para nações, civilizações inteiras.)
2. Cecília Meireles. Os primeiros livros papel-bíblia que
comprei, aos 14 anos, foram as poesias completas dela e as de Manuel Bandeira.
Que releio até hoje. O Romanceiro da
Inconfidência já bastaria para tornar qualquer pessoa um Poeta Maior. Posso
ter herdado dela um certo desligamento, uma certa ausência da vida prática, um
jeito mais de contemplar do que de agir. Não me arrependo.
3. Emily Bronte. Li O
Morro dos Ventos Uivantes na adolescência. Foi o único livro dela que li,
mas é como dizer: “foi a única bomba atômica que caiu em cima de mim”. Meus
referenciais de literatura gótico-romântica passam todos por ali, misturados às
ilustrações de Fritz Eichenberg na edição da José Olympio.
4. Mary Shelley. Outra de quem só li um livro (e alguns
contos esparsos, tentando achar algo que coubesse numa das minhas antologias). Frankenstein fundou, para alguns, o
romance moderno de terror, aquilo que chamo de “ciência gótica”. Grande
escritor é aquele que cria um personagem e desaparece por trás dele. E neste
livro pela primeira vez simpatizei com o monstro, entendi o lado do monstro,
senti que por um triz o monstro não era eu.
5. Simone de Beauvoir. Quando li O Segundo Sexo, com vinte e tantos anos, eu já estava
arriado-dos-quatro-pneus por ela, graças às Memórias
de uma Moça Bem Comportada, A Força
da Idade, Sob o Signo da História.
Vieram ainda A Cerimônia do Adeus, A América Dia a Dia e algum outro que
não lembro agora. Eu a achava linda, e mesmo com a propalada visão-crítica-que-é-apanágio-da-maturidade
continuo achando.
6. Nélida Piñon. Nos anos 1970 ela foi uma autora que li
miudamente, atentamente, decifrando livros densos, impressionantes, meio
oníricos, meio poéticos, como Guia-Mapa
de Gabriel Arcanjo (sua estréia, pela editora GRD), A Casa da Paixão, Sala de
Armas e outros. Em matéria de “prosa elevada” entre nós, para ombrear com
ela só mesmo Osman Lins e muito poucos.
7. Shere Hite & Nancy Friday. Vou trapacear um pouco
e dar uma só vaga para estas duas compiladoras enciclopédicas da vida sexual
nos EUA. Shere Hite publicou dois Relatórios
Hite, um sobre mulheres, outro sobre homens (li os dois na íntegra). Nancy
Friday escreveu livros sobre fantasias sexuais pesquisadas por correspondência
(My Secret Garden, O Homem e o Amor). Depois de ler estes
quatro livros a gente percebe que toda exceção não passa de uma regra que ainda
não cresceu o bastante, que em sexo tudo é possível, que tudo pode ser normal
entre quatro paredes e em pé de igualdade, que cada um gosta do que gosta, e que
não existe um chinelo velho que não encontre um pé doente.
8. Karen Blixen. Também conhecida como Isak Dinesen, era
uma baronesa dinamarquesa que escrevia em inglês como gente grande. Suas
histórias correm o tempo todo numa raia do insólito que a faz de vez em quando
triscar no fantástico. Sua prosa é brilhante em Winter Tales, Sete Contos Góticos, Last Tales.
9. Emily Dickinson. Acho essa “solteirona reclusa” o
maior mistério literário da América. Inventou uma linguagem própria, pontuação,
notação própria, imagens surpreendentes de um poder simbólico desconcertante, e
que só se revela em parte. É uma dessas poetas que inventam não apenas uma
obra, mas uma poética só sua. Parecem versículos bíblicos, pequenas
adivinhações, bilhetes anônimos e incompletos. Muito difícil de traduzir.
10. Dorothy Parker. É o oposto simétrico de Dickinson.
Extrovertida, famosa, língua ferina, teve uma vida atribulada e cheia de
paixões e sexo. Contista mordaz e
precisa (Big Loira), poetisa de
versos curtos, compactos, dolorosamente verdadeiros. Também difícil de
traduzir, embora mais coloquial, mais urbana, mais moderna.
11. Hilda Hilst. Por falar em quem cria uma poética
própria, a paulista Hilda me deixou bambo nas cem primeiras tentativas de ler
sua poesia densa, ziguezagueante, de imagens consistentemente inesperadas. Seus
poemas estavam espalhados pelas publicações literárias da imprensa alternativa
dos anos 1970 e eu os lia com o cuidado de quem desarma uma bomba. Depois de
certa idade, começou a publicar narrativas fesceninas e virou uma “velha dama
indigna” igualmente deleitável.
12. Shirley Jackson. É engraçado, nunca li o livro mais
famoso dela, Hill House, tido como o
melhor romance de casa mal assombrada. Mas os contos incluídos em The Lottery e em Come Live With Me vão do gótico ao doméstico, do bizarro ao
cotidianamente banal, e ninguém melhor do que ela escreve histórias de mulheres
que de repente jogam tudo pro ar, chutam o pau da barraca, mudam de nome e vão
morar num hotel numa cidade desconhecida.
13. Clotilde Tavares. Pode parecer nepotismo. Mas minha
irmã mais velha dividiu comigo livros, filmes e discos até que eu fiquei um
rapazinho com 16 anos, capaz de escolher sozinho o que ia ler. Suas novelas de
histórias encapsuladas (A Botija, O Monstro das Sete Bocas) reelaboram
histórias que ouvimos na infância, mas ela também escreve teatro, poesia,
cordel, ensaio, o escambau. Não é mais minha professora, é minha colega, mas
ainda influencia.
14. Karen Joy Fowler. Minha professora na Clarion
Workshop (em 1991) já foi publicada no Brasil, com O Clube de Leitura Jane Austen, mas ninguém se animou a publicar
seus contos brilhantes, premiadíssimos, onde o protagonismo feminino é colocado
sem arrogância nem coitadismo; e o romance Sarah
Canary, sobre uma mulher alienígena (embora o livro nunca diga isto) que
aparece na região rural dos EUA por volta de 1880. Vi poucas pessoas falarem
sobre literatura com mais propriedade e finesse.
15. Rachel de Queiroz. Meu pai tinha um volume dela, da
José Olympio, com o título Três Romances,
que incluía O Quinze, Caminho das Pedras e João Miguel. Nunca me saiu da cabeça a
linha inicial deste último, algo como “João Miguel sentiu a peixeira rasgando a
barriga do outro homem, depois puxou a arma, jogou longe, saiu correndo”. Não
conheço melhor exemplo de início de narrativa in media res. Meio século depois, coloquei o conto de ficção
científica dela, “Ma Hôre”, na minha antologia Páginas do Futuro – Contos Brasileiros de Ficção Científica.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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