Um singelo experimento filosófico de devolucão das pessoas a elas mesmas
Quero sugerir uma estratégia bem simples
para encontrar pessoas. Talvez esse experimento possa ser expandido.
Mas em princípio, é um pré-projeto, um conjunto de apontametos iniciais,
que pode ser usado com o objetivo de encontrar pessoas dentro de casa.
Pensei em desenvolvê-lo tendo em vista que, desde a invenção dos
aparelhos, da máquina de fotografar ao celular, passando pela televisão e
pelo computador e do sempre crescente incremento das tecnologias, temos
preferido as máquinas às pessoas e não conseguimos conversar com as
pessoas com quem vivemos. Há muitos motivos para isso. Neste momento vou
apenas sugerir o experimento que poderá ser avaliado por quem quiser
como útil ou inútil.
O proponente do experimento aguarda críticas e sugestões.
Primeiro passo: abordar as pessoas que estão na sala
Nesse momento, uma ou mais pessoas estão
na frente da televisão aí na sala da sua casa. Vamos levar esse texto
que você lê agora até elas. Se as pessoas não estiverem na frente da
televisão, mas diante do computador, não envie para elas por email ou
pelo messenger. Vá até elas e pergunte se poderiam parar um pouco o que
estão fazendo e ler esse pequeno texto com você. Talvez seja difícil
porque você vai precisar imprimir, caso não tenha um computador
portátil. A outra alternativa é chamar as pessoas e ler aqui mesmo,
nessa tela diante da qual você está agora. Vamos ver se você consegue
essa pequena adesão das pessoas da sua casa. Não desista, é importante
para o próximo passo.
Segundo passo: ler com atenção buscando uma consciência da voz
Ler é legal. Pensa só. Por meio da
leitura, as pessoas prestam atenção na voz do outro e, no caso de quem
lê, na própria. A voz parece algo não corpóreo, embora saibamos que a
voz seja física. Mas ela não parece física. Ela é invisível, mas todo o
nosso senso das coisas materiais passa pelo visual. Isso é cultural.
Parece, no entanto, natural. Você já ouviu falar que os sentidos
enganam, não é? Talvez mais porque nos acostumamos com as coisas e
quando nos acostumamos é difícil ver e ouvir. É difícil sentir em geral.
E também é difícil pensar. Então, sem ver ou ouvir, sem sentir nem
pensar, é fácil “naturalizar”.
Claro que a voz também engana. Claro que
ouvimos mal, claro que estamos acostumados às mesmas vozes. Pense nas
pessoas na frente da televisão ouvindo aquela mesma voz monótona do
mesmo apresentador de sempre, com as mesmas notícias de sempre. Aquelas
notícias que não dizem muita coisa, mas que servem para passar o tempo e
nos dão as respostas que, imaginamos, sejam suficientes para levar a
vida. No fundo, não estamos escutando, assim como não estamos vendo. As
imagens sempre aparecem como se fossem verdadeiras. Isso é do seu ser.
Mesmo que sejam manipuladas, ficam com a aura da verdade. Colam em nós
como verdades inquestionáveis.
É preciso saber isso. Ficamos tão
acostumados com as coisas que estamos habituados a ver e ouvir que
perdemos as paisagens, sejam visuais, sejam sonoras, ao nosso redor.
Estamos ali, meio anestesiados pelas coisas que acostumamos a ouvir.
Assim com as pessoas na sala que é preciso chamar para ouvir.
Então, você chega e pede para os seus
familiares, aqueles que partilham com você o lar, um espaço muito
especial de convivência, que eles leiam com você. Eles não ouvem. Estão
ligados na televisão ou no facebook. Você insiste. Escutam seu chamado
com um pouco de receio. Pensam que é uma bobagem, que você ficou chato,
quer atenção. Uma atenção que eles não tem para dar. De tanto você
insistir, de repente a chave muda e eles passam a esperar por uma grande
revelação.
Eles param pra te ouvir entre o tédio e a curiosidade e você lê para eles.
Terceiro Passo: enfrentar a estranheza, do gesto, dos outros, do texto e do silêncio
As pessoas na sala estão acostumados a
pensar de um jeito meio extremista: ou isso ou aquilo. Ou as coisas são
chatas ou são emocionantes. Você que se aventurou a chamá-los, sabia que
podia ser estranho fazer uma coisa dessas, afinal, vivemos na lógica do
“cada um na sua”, que uns chamam de individualismo. Cada um no seu
quadrado como diz a música. Mas você está a fim de uma pequena aventura
doméstica, no reino paralelo da alteridade da casa. Dá para entender que
você resolveu enfrentar a estranheza familiar, o estranho, que há algo
de inquietante acontecendo entre você e as pessoas ali naquela sala. Que
talvez isso tenha sido provocado por um texto que resolveu se
intrometer, como se estivesse vivo, na vida dos outros.
Enquanto você chama os seus familiares,
você mesmo pensa que há algo fora do comum nesse chamado. A questão
sobre esse gesto estranho, mais que um gesto, uma ação estranha, vem
fácil quando fixamos um pouco o pensamento nisso que parece “estranho”.
Então, temos que colocar uma lupa para
olhar para isso. Para o estranho. O estranho do seu gesto entrou em cena
pelo texto, mas antes havia outra coisa estranha. São, portanto, dois
estranhamentos. Um que serve para nos aproximar, outro que serve para
nos afastar.
Um dos telefones dos presentes dá um
sinal de alerta de mensagem, o outro toca, e você não atende e não
permite que o outro atenda, pois o telefone quebra a estranheza
libertadora que estamos tentando produzir.
Quarto passo: verificando a presença
Você não tem a sensação de que alguma
coisa se perdeu desde que ficamos o dia inteiro colados em aparelhos
tecnológicos? Da televisão ao celular, passando pelo computador, você
não tem uma sensação de ansiedade, de angústia, até mesmo de ausência.
As pessoas na sala ao lado, essas que você chamou para ler o texto, não
te parecem estranhas? Tão estranhas como a ação doméstica que você
promove agora como se fosse um experimento cientítico?
Não parece que você perdeu o acesso a
essas pessoas? Mais fácil teria sido mandar esse texto por email, pelo
whatsapp, postar no facebook e esperar que ela compartilhasse sem ler?
Então você pede que a pessoa leia um pedaço do texto.
E espera para ver se ela se desintegra ou não.
Quinto passo: verificando a própria presença
Não parece que perdemos alguma coisa entre nós? Que não estamos no lugar certo?
A impressão de que nesse mundo virtual
perdemos a sensação de presença não se torna comum? De que perdemos a
presença, a nossa própria e a dos outros?
Será que o que perdemos não foi o corpo?
Podemos nos perguntar como se deu o processo de extraviamento dos
nossos corpos. Podemos perguntar se realmente estamos em nós mesmos, ou
se estamos fora de nós? Não será por isso que há tanta gente hoje
fazendo coisas muito bizarras em termos éticos e políticos? Em termos
discursivos também? O que as pessoas dizem, o que professam, o modo como
falam, dão a impressão de “alienação”, no sentido mais técnico e antigo
que os psiquiatras davam aos loucos. Esse falar ventríloquo, no
entanto, não tem a ver com loucura, tem relação direta com a impotência
do pensamento, com a impotência do sentimento, com a impotência da ação.
Isso que faz as pessoas ficarem sentadas na frente da televisão
recebendo tudo isso de uma vez: pensamentos prontos, emoções
programadas, ações dirigidas sempre pelo mesmo ordenamento que é comprar
(o que for possível, conforme sua classe social).
Nesse estado de importência pessoal,
cada um pensa, sente e age como se vivesse sem os outros. Como se
estivesse sozinho no mundo. Sem a conexão com os outros, perdeu-se
também a conexão consigo mesmo.
Se você ainda está lendo para os seus amigos ou familiares, tem uma prova de que está presente.
Pode seguir ao passo seguinte.
Sexto passo: a descoberta da linguagem
Não conseguimos fazer conexões com os
outros fora da linguagem. Linguagem é, aliás, uma palavra estranha
também, muito simples e muito complicada. Muito clara e muito nebulosa.
A linguagem é imensa e infinita.
Quando falo em linguagem estou querendo
dizer algo sobre tudo aquilo que usamos para nos comunicar, nos
expressar e nos informar. Ler, por exemplo. Faz parte da linguagem. É um
dos seus atos mais preciosos.
A impotência do pensamento, da emoção e
da ação constroem-se, inevitavelmente, como impotência da linguagem.
Isso é fácil de comprovar quando percebemos que não sabemos o que falar,
ou quando falamos demais, ou quando começamos a falar por falar, sem
ter nada a dizer. Quando começamos a usar a linguagem como se fosse uma
coisa que nos dá lucro (como no facebook onde juntamos “curtidas” como
moedinhas num cofre) ou serve para violentar os outros.
Ler, sobretudo, romances e ensaios,
poesias e filosofia, ajuda a ampliar o horizonte da linguagem. Faz a
gente crescer por dentro, mais ou menos isso.
Aprendemos essas impotências com esses
mecanismos altamente empobrecedores da linguagem que são os meios de
comunicação quando eles deturpam sua função de comunicar e informar e
passam a manipular. Coisa que se aprende vendo televisão ou ficando no
computador o dia todo sem parar para ler um livro. E sem parar para
conversar de verdade com alguém. Há pessoas que são como livros,
surpreendentes.
Sétimo passo: preparar para o fim do procedimento
Sei que não há tempo pra isso: conversar
de verdade com alguém. Mas temos que construir esse tempo, sob pena de
perdemos a nós mesmos no meio do caos da linguagem manipulada do mundo.
Por isso, sugiro que você vá até a sala e
chame mesmo os seus para ver se eles ainda estão ali. Verifique se eles
não tem a mesma sensação estranha de que está faltando alguma coisa
entre vocês.
Talvez essa coisa sejamos nós mesmos. Cada um.
Mas não diga isso para as pessoas agora.
Elas podem ficar assustadas, elas podem se sentir ofendidas ao saberem
que o que falta são elas mesmas. E não queremos ofender ninguém. Ofender
não nos levaria a lugar nenhum, muito menos a um contato que ainda seja
vivo, antes de termos sido programados para viver segundo regras postas
por telas e seus funcionários dedicados que manipulam a linguagem, a
informação, a comunicação, a expressão.
Para fechar o singelo experimento que
fazemos com a linguagem nesse momento, vamos pedir aos que nos ouviram
que desliguem televisões e computadores e que abram um livro. Se
sobreviverem ao estranhamento por uma noite, é sinal de que ainda
pertencem a si mesmos.
Você que propôs o experimento, encontrou uma pessoa e foi capaz de devolvê-la a si mesma.
Não sei como se certifica isso, que tipo
de qualificação isso gera, mas me parece que vale, para começar, pela
simples descoberta.
Márcia Tiburi
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