Amada pequena menina,
Os astrônomos afirmam que as estrelas que hoje vemos reluzir começaram a arder há centenas de milhares de anos e talvez hoje estejam se extinguindo. Tal é a dimensão de distância que nos separa delas, até mesmo para um raio de luz que, sem se cansar, percorre mais de 40.000 milhas em um segundo.
Sempre foi difícil para mim imaginar isso, mas agora posso fazê-lo
com facilidade quando penso como você sorri diante de minhas cartas
cordiais, enquanto minha alma sofre com dúvidas e preocupações, e quando
penso como você se aborrece com a minha dureza e a minha desconfiança,
enquanto uma medida de ternura, que luta em vão para se expressar, me
preenche.
Há dois caminhos para evitar esta incongruência. O primeiro seria me
abster de relatar uma atmosfera que supostamente não vai duram nem uma
semana. O outro seria fazê-lo mantendo um olhar sereno, acima do
teatrinho de mascares que a vida vai encenando conosco.
Desprezamos o primeiro caminho, o caminho da preservação, porque ele
pode acabar levando ao estranhamento. Por isso, somos obrigados a fazer
aquilo que o segundo caminho nos recomenda.
Imagine que cada duas horas dos quatro dias que se passam entre a
minha pergunta e a sua resposta — não, mais 64 das 96 horas —
estendessem a tal ponto por meio de pensamentos confusos a respeito de
você que a pobre pessoa por fim não fosse mais capaz de distinguir esse
intervalo de tempo de um mês ou de um ano.
Imagine quão vazios e, consequentemente, quão breves pareceriam os
milênios durante os quais não pensamos em nada, e então você será
forçada a admitir que o atraso dos acontecimentos que interessam ao
astrônomo não será maior do que aquele que nós dois somos forçados a
suportar por causa de seu veraneio em Wandsbeck.
O que nós, ligados de maneira tão íntima e tão insolúvel, teremos que
fazer quando acontecer entre nós algo como aquilo que constituía o
conteúdo de minhas últimas cartas. Se eu não estiver fisicamente
exausto, vou empurrar para um segundo plano as poucas lembranças
incômodas associadas aos meus esforços por você e me alegrar pensando em
tudo de bom e de belo que vi em você, e em todos os sacrifícios que
você fez por mim até hoje.
Você vai habituar-se a continuar amando o pobre homem, apesar de sua
antipatia, de seus maus humores esporádicos e de seus julgamentos
equivocados, e continuaremos a caminhar juntos alegremente. Se não me
engano, hoje efetivamente você não é capaz de dedicar a mim todo o seu
amor sem alguma dificuldade, e à custa de autocontrole — e eu só serei
capaz de sorrir, ciente de minha vitória, quando você finalmente se
tornar minha, seguindo o curso inevitável da natureza, como eu pretendia
desde o começo.
Por isso alegre-se, amada Marthinha, o tempo há de chegar — se é que
ainda não chegou — no qual tudo aquilo a que um dia você concedeu uma
parte de sua estima se tornará uma sombra que não vai perturbá-la mas do
que a mim mesmo.
Em breve, terei que retomar meu trabalho, que por meio de um hábito
seguido com pontualidade primeiro se torna suportável e depois pode
tornar-se estimado. Tenho diante de outros principiantes a vantagem de
uma maturidade maior, e de maior consideração por parte dos superiores.
Atualmente falta-me a confiança que vem de habilidades conquistadas pelo
hábito constante, porém não me faltam conhecimentos teóricos nem a
capacidade de observar o corpo humano como um simples objeto, sem me
intimidar com as dores dos pacientes.
Durante os poucos dias nos quais me dediquei à cirurgia, realizei
algumas pequenas operações com o bisturi, coloquei algumas ataduras com
gesso e, por duas vezes, conduzi a anestesia de pacientes por meio de
clorofórmio.
Das atividades que realizei, está última é certamente a mais
desagradável, pois a morte súbita durante a anestesia por clorofórmio,
esse acontecimento temido por todos e incontrolável, faz com que o
médico fique em estado permanente de excitação nervosa.
No quarto que me foi designado encontra-se também um menino pobre e
perdido, cuja perna precisa ser diariamente lavado com o maior cuidado
antes que seja trocado seu curativo, e eu não escapo dessa atividade
desagradável e de pouco sucesso.
Os próximos três meses no departamento de cirurgia certamente vão
melhorar visivelmente minha habilidades e, se alguma vez eu tiver de
retirar do mais lindo dos olhos um grãozinho de poeira, as dores que a
querida menina terá de enfrentar nessa grande operação serão muito mais
suaves.
Sorte de quem puder em breve ver estes olhos lindos reluzindo de
amor! Agora infelizmente Eli está tão apaixonado por Fritz que ele
também não consegue largar de Martha e esse novo amor me custa tanto
sofrimento quanto o anterior.
Um consolo são agora as três irmãs iniciadas, que sempre conversam, e
com as quais pode-se falar de Martha, e que me parecem melhores e mais
maduras, como se entendessem como a nossa vida mudou.
Elas também contam algumas coisas com as quais se poderia provocar a
Marthinha num momento alegre, por exemplo como ela nos criticou uma vez
na casa dos Weiss, e eu sou obrigado a rir quando me lembro quanto ele
foi castigada por isso.
Amanhã voltarei a escrever uma cartinha, o dia de hoje é tão
irritante e perturbador. Vamos fazer com que passe depressa, para dar
lugar a um outro, melhor.
Com cordiais saudações à única e querida menina amada,
Teu Sigmund.
De Freud para Martha
7.8.1882
7.8.1882
Fonte aqui
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