Há algo de estranho quando as pessoas
passam a desconfiar de quem defende direitos para todos, inclusive para
aqueles que são ignorados, quando não massacrados, por quem detém o
poder econômico ou político.
Há quem não veja nada de estranho nisso.
Em outras palavras, há quem veja com maus olhos justamente quem combate
injustiças e defende os direitos dos que sobrevivem sem direito algum. É
como se preferissem uma sociedade sem direitos. O ódio àqueles que
mantêm viva a ideia de que a sociedade só é possível se direitos
fundamentais forem respeitados torna-se cada vez mais comum e natural.
Acostumados a não respeitar as
diferenças, a etiquetar o “outro” como inimigo, a pensar de acordo com
critérios impostos pelas elites, a negar direitos a quem enquadram como
diferentes, ao mesmo tempo em que reconhecem privilégios aos amigos,
acostumados a naturalizar os abusos e as violações, os que se
autointitulam “cidadãos de bem” passam a medir os outros como se
olhassem para um espelho sem que tenham como perceber esse fato. A
partir da ignorância, do egoísmo e da seletividade que marcam sua
maneira de atuar no mundo, pessoas medem outras impondo, contudo, uma
lógica de dois pesos e duas medidas.
Em geral,isso acontece com todo mundo.
Medimos o outro por nós mesmos. Aplicamos a lógica da medida baseada em
inferior e superior, pior e melhor, e nos colocamos, evidentemente,
sempre no lugar do superior e do melhor. O outro tem que representar o
pior para assegurar que o melhor seja reservado a mim. Sobretudo se
percebemos que o outro esteja na “melhor” posição, no lugar do sucesso,
da admiração, do amor, então as coisas ficam piores ainda. O que fazemos
para o outro, a favor ou contra, tem a função de nos fazer lucrar
subjetivamente. É raro uma atitude realmente desinteressada. Mas quando o
outro se apresenta como algo de melhor, aí sim, é que vivemos o teste
da personalidade autoritária e fascista em cuja base os afetos mais
tristes comandam os pensamentos mais tortuosos e as ações mais
abomináveis.
Nesse contexto, a incapacidade de olhar
para si mesmo de maneira autocrítica é proporcional ao gesto de projetar
no outro aquilo que, no fundo, odeia em si mesmo ou aquilo que, não
podendo ter, causa um sério mal estar. Em termos simples, quem odeia
deveria olhar melhor para o que odeia, pois odeia no outro algo que lhe é
muito íntimo por excesso ou falta.
Desonestidade compulsória
Assim podemos compreender como aqueles
que se tornaram incapazes de empatia, de generosidade e de amor ao
próximo, são capazes de acreditar que há algo de podre nos que revelam
ser possível pensar e agir diferente. A desconfiança de quem é
profundamente desonesto recai sobre a honestidade alheia tratada como
impossível. A honestidade torna-se uma característica estranha quando a
norma é a desonestidade compulsória. Desconfiar é, nesse contexto, um
gesto de autodefesa subjetiva com a qual o desonesto sempre lucra.
A desconfiança na honestidade comprovada
é a estratégia para esconder a própria desonestidade. Como o psiquiatra
que diagnostica a todos como loucos esconde-se como o único lúcido que
restou, o juiz que mostra que todos são culpados, esconde-se como o
único ininputável, o policial que a todos admoesta, prende e violenta, é
quem parece fazer justiça. Sabemos onde isso vai dar quando pensamos no
que vem sendo feito com a corrupção, transformada a cada dia em uma
curiosa ideologia de acobertamento da própria corrupção. Usa-se hoje a
“corrupção do outro” para evitar parecer corrupto e assim manter a
corrupção real em seu lugar assegurado.
No fundo de tudo isso, há o mais
perigoso dos afetos: a inveja, que está na base mais profunda da
personalidade autoritária. É a inveja que potencializa o ódio que vemos
manipulado em nossa cultura pelos meios de comunicação e as demais
instituições de poder.
Aqueles que invejam são incapazes de
mudar, querem excluir ou exterminar quem, por pensar diferente (ou
apenas por pensar), os humilham em sua posição de invejosos. Como
fascistas, tem ódio ao conhecimento.
As recentes notícias envolvendo o juiz
amazonense Luis Carlos Valois parecem apontar para esse fenômeno cada
dia mais atual: a demonização daqueles que acreditam ser possível um
outro mundo. Para mentes tacanhas, uma pessoa que respeita direitos dos
presos (e, por isso, é respeitada por eles), tem que estar envolvida com
ilicitudes. É a lógica da medida que tenta inferiorizar quem parece
melhor do que os demais em um contexto em que ser e agir pelo pior é a
regra. A honestidade torna-se um valor impossível. Consegue-se com isso
fundamentar a desonestidade e a corrupção como uma regra, mais, como uma
lei. Quem ameaça essa lei deve ser punido. Antes de qualquer outro.
Na inversão ideológica, que fique claro,
os direitos fundamentais dos cidadãos são tratados como o que há de
pior, o que não deveria existir. E as pessoas que são consideradas
inferiores não devem ter direitos porque elas também não deveriam
existir. Consegue-se assim sustentar a lógica profunda da ação violenta
contra os direitos: a do extermínio dos que não tendo direitos não
conseguirão sobreviver.
É o que vem acontecendo com várias
pessoas que ousam manter os valores democráticos, que ousam ser
realmente honestas. Vide o caso de políticos acusados de corrupção que
se apressam para acusar de corrupção outros políticos, mesmo que contra
esses não existam provas. Todos os que não se curvarem à ordem da
corrupção do pensamento, das emoções, dos direitos e das ações, pagam
caro nesse momento. São caçados pelos próprios colegas.
Luis Carlos Valois é um juiz conhecido
por não buscar o aplauso fácil assegurado aos que cedem à
espetacularização da Justiça, não reproduzir os mantras dos meios de
comunicação de massa, opor-se à insana “guerra às drogas”, respeitar os
direitos fundamentais de todos e dedicar-se à academia (em meio de
tantos atores jurídicos, fascistóides, que têm ódio ao conhecimento). Em
seu caso, como não ser culpado?
A honestidade, a coragem democrática, ofende os covardes.
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