quarta-feira, 22 de junho de 2016

Caça às bruxas

Há algo de estranho quando as pessoas passam a desconfiar de quem defende direitos para todos, inclusive para aqueles que são ignorados, quando não massacrados, por quem detém o poder econômico ou político.
Há quem não veja nada de estranho nisso. Em outras palavras, há quem veja com maus olhos justamente quem combate injustiças e defende os direitos dos que sobrevivem sem direito algum. É como se preferissem uma sociedade sem direitos. O ódio àqueles que mantêm viva a ideia de que a sociedade só é possível se direitos fundamentais forem respeitados torna-se cada vez mais comum e natural.

Acostumados a não respeitar as diferenças, a etiquetar o “outro” como inimigo, a pensar de acordo com critérios impostos pelas elites,  a negar direitos a quem enquadram como diferentes, ao mesmo tempo em que reconhecem  privilégios aos amigos, acostumados a naturalizar os abusos e as violações, os que se autointitulam “cidadãos de bem” passam a medir os outros como se olhassem para um espelho sem que tenham como perceber esse fato. A partir da ignorância, do egoísmo e da seletividade  que marcam sua maneira de atuar no mundo, pessoas medem outras impondo, contudo, uma lógica de dois pesos e duas medidas.

Em geral,isso acontece com todo mundo. Medimos o outro por nós mesmos. Aplicamos a lógica da medida baseada em inferior e superior, pior e melhor, e nos colocamos, evidentemente, sempre no lugar do superior e do melhor. O outro tem que representar o pior para assegurar que o melhor seja reservado a mim. Sobretudo se percebemos que o outro esteja na “melhor” posição, no lugar do sucesso, da admiração, do amor, então as coisas ficam piores ainda. O que fazemos para o outro, a favor ou contra, tem a função de nos fazer lucrar subjetivamente. É raro uma atitude realmente desinteressada. Mas quando o outro se apresenta como algo de melhor, aí sim, é que vivemos o teste da personalidade autoritária e fascista em cuja base os afetos mais tristes comandam os pensamentos mais tortuosos e as ações mais abomináveis.

Nesse contexto, a incapacidade de olhar para si mesmo de maneira autocrítica é proporcional ao gesto de projetar no outro aquilo que, no fundo, odeia em si mesmo ou aquilo que, não podendo ter, causa um sério mal estar. Em termos simples, quem odeia deveria olhar melhor para o que odeia, pois odeia no outro algo que lhe é muito íntimo por excesso ou falta.

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Desonestidade compulsória 

Assim podemos compreender como aqueles que se tornaram incapazes de empatia, de generosidade e de amor ao próximo, são capazes de acreditar que há algo de podre nos que revelam ser possível pensar e agir diferente. A desconfiança de quem é profundamente desonesto recai sobre a honestidade alheia tratada como impossível. A honestidade torna-se uma característica estranha quando a norma é a desonestidade compulsória. Desconfiar é, nesse contexto, um gesto de autodefesa subjetiva com a qual o desonesto sempre lucra.

A desconfiança na honestidade comprovada é a estratégia para esconder a própria desonestidade. Como o psiquiatra que diagnostica a todos como loucos esconde-se como o único lúcido que restou, o juiz que mostra que todos são culpados, esconde-se como o único ininputável, o policial que a todos admoesta, prende e violenta,  é quem parece fazer justiça. Sabemos onde isso vai dar quando pensamos no que vem sendo feito com a corrupção, transformada a cada dia em uma curiosa ideologia de acobertamento da própria corrupção. Usa-se hoje a “corrupção do outro” para evitar parecer corrupto e assim manter a corrupção real em seu lugar assegurado.

No fundo de tudo isso, há o mais perigoso dos afetos: a inveja, que está na base mais profunda da personalidade autoritária. É a inveja que potencializa o ódio que vemos manipulado em nossa cultura pelos meios de comunicação e as demais instituições de poder.

Aqueles que invejam são incapazes de mudar, querem excluir ou exterminar quem, por pensar diferente (ou apenas por pensar), os humilham em sua posição de invejosos.  Como fascistas, tem ódio ao conhecimento.
As recentes notícias envolvendo o juiz amazonense Luis Carlos Valois parecem apontar para esse fenômeno cada dia mais atual: a demonização daqueles que acreditam ser possível um outro mundo. Para mentes tacanhas, uma pessoa que respeita direitos dos presos (e, por isso, é respeitada por eles), tem que estar envolvida com ilicitudes. É a lógica da medida que tenta inferiorizar quem parece melhor do que os demais em um contexto em que ser e agir pelo pior é a regra. A honestidade torna-se um valor impossível. Consegue-se com isso fundamentar a desonestidade e a corrupção como uma regra, mais, como uma lei. Quem ameaça essa lei deve ser punido. Antes de qualquer outro.

Na inversão ideológica, que fique claro, os direitos fundamentais dos cidadãos são tratados como o que há de pior, o que não deveria existir. E as pessoas que são consideradas inferiores não devem ter direitos porque elas também não deveriam existir. Consegue-se assim sustentar a lógica profunda da ação violenta contra os direitos: a do extermínio dos que não tendo direitos não conseguirão sobreviver.

É o que vem acontecendo com várias pessoas que ousam manter os valores democráticos, que ousam ser realmente honestas. Vide o caso de políticos acusados de corrupção que se apressam para acusar de corrupção outros políticos, mesmo que contra esses não existam provas. Todos os que não se curvarem à ordem da corrupção do pensamento, das emoções, dos direitos e das ações, pagam caro nesse momento. São caçados pelos próprios colegas.

Luis Carlos Valois é um juiz conhecido por não buscar o aplauso fácil assegurado aos que cedem à espetacularização da Justiça, não reproduzir os mantras dos meios de comunicação de massa, opor-se à insana “guerra às drogas”, respeitar os direitos fundamentais de todos e dedicar-se à academia (em meio de tantos atores jurídicos, fascistóides, que têm ódio ao conhecimento). Em seu caso, como não ser culpado?

A honestidade, a coragem democrática, ofende os covardes.

Márcia Tiburi

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