Brilhou o número. Entreguei minha
senha. São cinco mil reais, ela disse, sem olhar para mim, preenchendo
um formulário. Aquilo me pareceu muito seco. E o tempo? – eu quis saber,
passando-lhe o cheque. Por esse preço, eles devem ganhar muito
dinheiro. Tempo? – e ela sorriu, não exatamente com ironia. Talvez ela
me achasse ingênuo. Uma pequena ansiedade – já havia alguém com a ficha
na mão, esperando o 18 brilhar. Sempre sorrindo, a funcionária apontou o
dedo para o fundo do corredor. É a última porta, ela disse. Eu me sinto
idiota nesses momentos. No meio do caminho lembrei do imposto de renda –
sem recibo, eu poderia descontar? Quase voltei, mas ela já atendia o
18. E ela não me falou do tempo – o dinheiro que estou pagando não é
pouco. Imaginei o que dizer a algum porteiro que encontrasse ao abrir a
porta, mas quando a porta se abriu senti uma vertigem breve, o clarão de
luz, um baque nas pernas, a tontura. Abri os olhos e vivi o pânico da
estranheza. Uma tarde tranqüila naquela rua que, primeira impressão, me
pareceu pequena demais, como uma fraude. É aqui mesmo? Tentei lembrar do
que eu havia escrito na requisição e sorri, nervoso, pensando naquele
seriado imbecil, A Ilha da Fantasia. Eis o meu desejo: o tempo. Pois
bem, parece que é isso – ou só isso. No momento seguinte senti uma
brutal felicidade: sim, era aquela casa mesmo, cinqüenta anos antes. E
senti poder: nada pode me tocar. Tudo é irremediável, e isso, pelo menos
aqui, é muito bom. Avancei para o portão, com uma sem-cerimônia afinal
grosseira, percebi, quando o menino largou o carrinho de matéria
plástica no degrau e me olhou assustado: quem é esse homem barrigudo?,
ele parecia perguntar, e naqueles olhos arredios como que adivinhei cada
fiapo de idéia. Avisar o pai, é o que ele queria, o que me deu a senha:
O seu pai está? – e sorri. E só então – o momento mais brutal da minha
vida – percebi quem afinal era o menino e senti a densa hostilidade com
que me olhava. As crianças são seres totalizantes, eu mesmo me
desculpei. Ele não pode imaginar o que – o quê? Ele só pode
imaginar. A hostilidade aparente se transformou numa concha de medo, mas
não muito. Esticou o braço sem tirar os olhos dos meus olhos – foi a
minha vez de sentir estranheza. A calça curta, os suspensórios, a
camisa, a boina. A imagem de uma nitidez absurda, e no entanto sem paz –
um cromo vivo e tenso. Talvez ele me acusasse, se soubesse. Contornei a
casa branca – tudo menor do que eu imaginara – e vi meu pai atrás de
uma pequena cerca divisória, erguendo uma galinha pelas pernas, como um
troféu. Sem camisa, costelas à mostra, a magreza de um branco queimado.
Era quase como um retorno triunfal, eu sonhei durante dois passos, até
receber nos olhos aqueles olhos de então – toda a sua fria beleza se
concentrava neles – e a galinha silenciou abrupta, na paz da cabeça para
baixo. Ele esperava que eu falasse – talvez eu quisesse comprar a
galinha. Ou. Ele aguardava a minha palavra: na imediata organização
daquele cenário eu era o mais velho e o mais importante. O mais alto
também, espantei-me. Ele foi baixando a galinha, que evitava o
escândalo, e continuou a me olhar, à espera. Percebi que ele não teria
jamais a menor idéia de quem era aquele senhor estranho diante dele. Mas
eu sabia: em três semanas ele estaria morto. Desculpe-me, eu disse – e a
voz saiu baixa. Ele continuava à espera. Eu me perdi – expliquei,
erguendo levemente os braços, com um sorriso ambíguo. Ele sorriu agora,
ainda sem entender perfeitamente, mas o dedo apontava uma saída lateral,
como se aquilo não fosse um quintal fechado, mas um espaço aberto no
campo. O menino, brinquedo de novo à mão, estava próximo agora, como
para proteger o pai e também se proteger. Aquele não era o meu lugar. O
tempo, eu pensei, lembrando a funcionária, e veio a vertigem. De volta
pelo corredor, o homem com a senha 18 entregava o cheque – parecia
animado. Não precisei perguntar – ela me estendeu um papel, finalmente
me olhando nos olhos, o sorriso franco: O seu recibo, senhor.
Cristovão Tezza
Publicado na revista Bravo!, de fevereiro de 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário