“Se te é impossível
viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da
alma; és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre”
Fernando
Pessoa (Fragmentos de uma autobiografia, 2011, p.245).
A
palavra solidão nomeia um estado que não é sentido da mesma forma por todas as
pessoas. Para alguns a solidão é o decreto dos travesseiros pesados, das
tristezas profundas, do vazio sem palavras. Buscam fugir dela, pois é sentida
como intolerável e desesperadora. Já
para outros a solidão é um estado desejado, planejam os momentos em que enfim
conseguirão ficar a só, para usufruir plenamente de pequenos prazeres como
ouvir música, ler um bom livro, fruir da beleza, ter compreensões íntimas.
Freud
ao longo de todo o seu desenvolvimento teórico irá afirmar a intensa
dependência que um ser humano possui de outro, para sobreviver e se
desenvolver. Ele formula a compreensão de que o desamparo seria uma condição
fundadora do ser humano, pois só é possível se humanizar na relação com outro.
Somos vulneráveis ao desejo, à vontade e ao olhar de outro. O que ocorre é que
muitas vezes essa dependência se torna tão grande que anulamos nosso próprio
desejo, nossas vontades e nosso olhar em prol de outras pessoas. Ficamos
alienados de nós mesmos, não sabendo nomear sozinhos o que nos faz sofrer.
Assim, em momentos de solidão somos tomados pela angústia, quando aquilo que
está oculto em nós (que negamos em prol do outro) pode irromper (Freud,
1926/1993).
Ficar
sozinho não é fácil, pois, impõe a companhia de si mesmo. Essa angústia ou a
tristeza da solidão não advém somente do estado de estar só, mas das fantasias
que a povoam: das culpas, dos ressentimentos, do medo de não conseguir alcançar
o ideal que impomos para nós mesmos. Nesse momento doloroso é mais fácil
entregar-se a qualquer companhia, de qualquer pessoa ou grupo, em que podemos
esquecer esses conflitos pela ilusão de não estarmos sozinhos - pela
identificação com uma ideia ou organização que nos oferece enganosamente uma
parte de seu poder, prometendo uma sensação de onipotência e completude. No
entanto, os conflitos são inerentes a nossa condição humana, os medos, as
frustrações, o desamparo e a solidão negados não deixam de existir. Não importa a música alta, a bebida, a
companhia que tenta nos fazer sorrir, ou o domínio do grupo ou organização do
qual fazemos parte: sentimo-nos sós em meio a tanta gente.
A
solidão não é algo que podemos escolher ou abandonar: somos solitários. Afinal
cada um é único e não é possível dividir com outra pessoa de forma plena todas
as sensações, percepções e transformações internas que sentimos. Sentimos com o
nosso próprio corpo e nossa história de vida – e é através desse corpo e dessa
história que percebemos e interagimos com o mundo, de forma tão singular.
O outro
não sou eu: e isso às vezes é insuportável, pois significa que teremos que carregar
o peso de nossa própria existência, sozinhos. Nossos limites e nossas faltas
nos pertencem, são de nossa própria responsabilidade e não do outro. A
densidade desse peso pode nos tornar leves, o que Kundera (1995) escreve como A insustentável leveza do ser. Desse
peso podemos construir um belo jardim. Ou podemos senti-lo como um fardo, e
sermos afundados para abaixo das nossas próprias raízes.
Com
base em Freud (1905/1996) podemos compreender que esse peso da solidão está
relacionado às primeiras sensações do bebê, que sente a falta da pessoa amada.
Sua total dependência desse objeto de amor, sua incapacidade de prover sozinho
as próprias necessidades gera tensão, que posteriormente se transformará em
angústia. Assim:
A angústia das crianças não é,
originalmente, nada além da expressão da falta que sentem da pessoa amada; por
isso elas se angustiam diante de qualquer estranho; temem a escuridão porque
nesta, não vêem a pessoa amada, e se deixam acalmar quando podem segurar-lhe a
mão na obscuridade (Freud, 1905/1996, p.211-212).
Freud
(1905) irá afirmar que o adulto muitas vezes irá se comportar como essa criança
com sua angústia, principalmente quando se sente inibido diante de suas
possibilidades de satisfação no mundo externo. Dessa forma, esse adulto “começa a sentir medo tão logo fica sozinho,
ou seja, sem uma pessoa de cujo amor se acredite seguro, e a querer aplacar
esse medo através das medidas mais pueris” (Freud, 1905/1996, p.212)
A
angústia da solidão advém da impossibilidade da criança (e adulto) de
metaforizar a falta de seu objeto de amor, de buscar formas satisfatórias de
saciar temporariamente essa falta. A criança se sente desamparada, ela é
indefesa na ausência do outro, pois não sabe suprir as próprias necessidades.
No entanto essa criança (e não mais o bebê) pode elaborar e conter essas
sensações. Ela pode simbolizar a presença da pessoa amada. Freud (1920/1993)
escreve um exemplo desse processo, analisando uma brincadeira de uma criança
com um objeto ligado a um fim (como um carretel). A criança joga-o e em seguida
o traz para perto de si. Afastando o objeto e puxando-o de volta (for-da) a criança busca controlar a
ausência da mãe.
O
prazer e a alegria extraídos da solidão ocorrem quando possuímos um mundo
interno povoado, rico em palavras, em boas lembranças: um grande mundo
simbólico que nos fortalece, por meio do qual podemos compreender a amar partes
de nossa história. Assim, quando a só podemos brincar com nossas faltas, porque
não estamos verdadeiramente sozinhos, mas na companhia dos afetos de muitas
pessoas que passaram por nossa vida. Podemos então construir diálogos da nossa
história com o mundo (por exemplo, com a literatura, a música, o cinema, etc).
Ao
contrário do que se pensa, só é possível estar verdadeiramente com o outro
quando se sabe estar só. Clarice
Lispector (1996) se pergunta: “amor será
dar de presente um ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que
se pode dar de si” (p.155). Dar a solidão é poder entregar-se
integralmente. Como saber amar o outro se não
se ama a própria história? Como ver e respeitar o outro em sua diferença se não
se assume as próprias falhas e responsabilidades? Como é difícil assumir para o
outro a dependência que temos dele, nosso enorme desamparo humano, e não o
culparmos por ele.
A
solidão traz a tona o medo da separação de um objeto altamente valioso
(castração). Entretanto, nossa vida é sempre separação, desde que o cordão
umbilical é cortado iremos passar a vida tentando - às vezes com muitos
momentos de sucesso - sermos um. Atualmente parece que é cada vez mais difícil
construir essa unidade de si mesmo, porque somos inundados cotidianamente com
falsas promessas de preenchimento de nossas faltas, principalmente por meio do
consumo. Ser um não é muito lucrativo. Ser padrão, estar enquadrado é muito
mais rentável e por isso, aceito e valorizado socialmente. As tecnologias de
comunicação nos iludem com a promessa de acabar com os limites do eu e do
outro. Pela internet podemos sempre estar conectados, com a ingênua ilusão de
que nunca iremos ficar sós. No entanto, esses meios não nos ligam inteiramente
com outras pessoas, mas sim ao vazio.
Escravos da tecnologia, dos meios de comunicação de massa, enfim,
do dinheiro, não podemos aceitar nossa solidão. E assim, ficamos reféns não
apenas do olhar de aceitação dos outros, mas de vontades pueris, fabricadas
para descarte.
Saber
estar só é o oposto da ideologia da competição e do individualismo, pois,
nesses estados ocorre o esvaziamento de si, em que os sujeitos são postos em
constante comparação. Nada de si mesmo é sentido como próprio e bom. Afinal,
torna-se necessário se despir da própria singularidade para engolir sem
questionamento os ideais culturais sobre-humanos que são impostos.
Rilke(2009),
o poeta da solidão, escreve que devemos ser pacientes com as nossas tristeza,
que devemos saber viver a solidão como quem espera o por do sol de cada dia, como companheira. Reconhecer a
própria finitude e o próprio desamparo é percorrer não apenas o caminho mais
dolorido de si mesmo, mas o mais belo e gratificante, como nos aponta Drummond
(1984):
Por
muito tempo achei que ausência é falta
E
lastimava, ignorante, a falta.
Hoje
não a lastimo
A
ausência é um estar em mim.
E
sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
Que
rio e danço e invento exclamações alegres,
Porque
a ausência assimilada,
Ninguém
a rouba mais de mim.
* Por Samara Megume Rodrigues
Referências
ANDRADE,
C, D. Ausência. In: Corpo. Rio de Janeiro: Record, 1984.
FREUD,
S. (1905). Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade. In: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud. (vol. VII).
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD,
S. (1920). “Más allá del princípio de
placer”. In: Obras Completas, (vol.
XVIII). Buenos Aires: Amorrortu, 1993.
FREUD, S. (1926). “Inhibicíón, síntoma y angustia”. In:
Obras completas, (vol.XX).Buenos
Aires: Amorrortu, 1993.
KUNDERA,
M. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Record, 1995.
LISPECTOR,
C. Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
PESSOA,
F. Fragmentos de uma autobiografia. In: Livro
do Desassossego – composto por Bernardo Soares ajudante de guarda-livros na
cidade de Lisboa. Lisboa: Assírio & Alvin, 2011.
RILKE,
R, M. Cartas a um jovem poeta. Porto
Alegre:Edição L&PM Pocket, 2009.
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