Costumamos dividir o tempo em três
partes: passado, presente e futuro. Mas, segundo Santo Agostinho, só
temos a capacidade de perceber e medir o tempo no momento em que decorre
O tempo é, e sempre tem sido, um problema
filosófico de grande interesse, principalmente em nossa época. Aliás,
não só para filósofos e cientistas, mas também para o indivíduo comum,
que está acostumado a organizar e realizar suas tarefas e experiências
de acordo com a idéea de tempo concebida como sucessão de instantes
traduzida em presente, passado e futuro. Agostinho de Hipona (354-430)
foi um dos grandes pensadores a se preocupar com esta problemática.
A reflexão filosófica agostiniana sobre o
tempo encontra-se no Livro XI da obra Confissões, texto belíssimo,
autobiográfico, redigido entre os anos de 397 e 398, em que Agostinho
revela-se admirável analista de problemas psicológicos íntimos, tanto
quanto de questões puramente filosóficas.
São perceptíveis três sentidos da palavra
confissão no texto agostiniano: confissão de fé, confissão de pecado e
de louvor a Deus. Nessa narrativa, o interlocutor privilegiado é o
próprio Deus, ou seja, o Tu Divino. É este Tu que vai garantir a
veracidade do relato de Agostinho, como ele próprio descreve: “Ó senhor
meu – a quem a minha consciência cotidianamente se confessa, mais
confiada na esperança da vossa misericórdia do que em sua inocência –,
mostra-me, eu Vo-lo peço, que proveito, sim, que proveito haverá em
confessar, neste livro, também aos homens, diante de Vós, não quem fui,
mas quem sou? Já vi e recordei o fruto que daí se tira. Há muitos,
porém, que desejam saber quem eu sou no momento atual em que escrevo as
Confissões. Desses, uns conhecem-me, outros não; ou, simplesmente
ouviram de mim ou de outros, a meu respeito, alguma coisa. Mas os seus
ouvidos não me auscultam o coração, onde eu sou o que sou. Querem, pois,
ouvir-me confessar quem sou no interior, para onde não podem lançar o
olhar, o ouvido ou a mente. Querem-no, contudo, dispostos a acreditar.
Poder-me-ão conhecer? A caridade, porém, que os torna justos, diz-lhes
que eu, ao confessar-me, não minto. É ela quem os faz acreditar em mim.”
Seu discurso autobiográfico passa sempre
pela certeza do Tu me conheces. Uma passagem obrigatória do eu
agostiniano por Deus, para depois voltar a si mesmo. Deste modo, em suas
confissões, Agostinho não pode enganar seus leitores, já que também não
pode enganar a Deus.
O Que é o tempo?
A reflexão filosófica de Agostinho sobre o
tempo é uma de suas mais brilhantes análises filosóficas, a qual o
torna, embora sendo um pensador medieval, muito mais contemporâneo do
que muitos outros da atualidade. O modo como Agostinho expõe suas
interrogações com relação ao tempo marca a reflexão ocidental até os
dias de hoje.
Questiona Agostinho: “Que é, pois, o
tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá
apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por
palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas
nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o
que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam.
O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o
quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.”
Agostinho defronta-se com algumas
dificuldades principais ao falar sobre o tempo: não podemos apreendê-lo,
pois o tempo nos escapa, não conseguimos medi-lo. E também não podemos
percebê-lo.
A nossa percepção do tempo permite
dividi-lo em três partes: passado, presente e futuro. A partir de nossa
experiência, sabemos que esses três tempos são bastante distintos entre
si. O passado é o tempo que se afasta de nós, de nossa consciência, de
nossa percepção; é tudo que já não é mais palpável, simplesmente porque
já se foi. Chamamos de presente o “agora”, o tempo em que nossas
experiências acontecem, no momento em que ocorrem. E o futuro, por sua
vez, corresponde ao conjunto de todos os eventos que se concretizam na
medida em que o tempo passa. Em outras palavras, o futuro é como o lugar
onde estão prontos todos os fatos que presenciamos quando determinado
período de tempo vier a transcorrer, por menos ou por mais extenso que
seja.
De acordo com nossa percepção, dividimos o
tempo em três partes distintas: o presente, o passado e o futuro. Seria
necessário, neste momento, lançar mão à seguinte questão levantada por
Agostinho: É possível medir o tempo? “E, contudo, Senhor, percebemos os
intervalos dos tempos, comparamo-los entre si e dizemos uns são mais
longos e outros mais breves. Medimos também quando esse tempo é mais
comprido ou mais curto do que o outro, e respondemos também que um é
duplo ou triplo, ou que a relação entre eles é simples, ou que este é
tão grande como aqueles. as não medimos os tempos que passam, quando os
medimos pela sensibilidade. Quem pode medir os tempos passados que já
não existem ou os futuros que ainda não chegaram? Só se alguém se
atrever a dizer que pode medir o que não existe! Quando está decorrendo o
tempo, pode percebê-lo e medi-lo. Quando, porém, já tiver decorrido,
não o pode perceber nem medir, porque esse tempo já não existe”
Desta forma, não conseguimos medir o
tempo. O presente porque não tem nenhum espaço; o futuro porque ainda
não veio e o passado porque já não existe mais. Podemos perceber e
medi-lo apenas no momento em que está decorrendo.
Tempo e Memória
A reflexão sobre a memória é um elemento
importantíssimo na filosofia agostiniana, principalmente para falar do
tempo. Ao falar da memória, Agostinho sempre usa as metáforas do lugar e
do espaço como, por exemplo, “campos e vastos palácios”, “santuários
infinitamente amplos”. Usa um vocabulário de beleza esplêndida, porém,
não é o suficiente para dizer o que é a memória (a análise sobre a
memória encontra-se no Livro X das Confissões).
O mesmo acontece com o tempo, pois, como
diz Jeanne Marie, professora do Departamento de Filosofia da PUC-SP: “é a
nossa propensão, quase natural, de falar e de pensar no tempo em termos
(em imagens, em conceitos) espaciais que nos impede de entender sua
verdadeira natureza”4. A linguagem não é suficiente para dizer a
memória, tanto quanto não é suficiente para dizer o tempo. Ou seja, não
conseguimos ir além ao que diz respeito à memória e ao tempo por sermos
impedidos pelas categorias espaciais que fazemos uso.
Agostinho entende que existe outra
maneira de pensar o tempo sem ser em termos espaciais, mas a partir de
outro elemento, que é a linguagem, a fala. E por este motivo ainda
continuamos pensando o tempo, mas sem a tentativa de explicar a sua
essência. Podemos tentar apreendê-lo a partir de nossas práticas
lingüísticas, porque a linguagem adquire sentido a partir do tempo. Em
outras palavras, não se pode pensar um sem o outro, pois a linguagem
articula o tempo, assim como o tempo articula a própria linguagem.
“Pensar o tempo significa, portanto, a obrigação de pensar na linguagem
que o diz e que nele se diz”.
Neste sentido, percebe-se que memória e
linguagem são de suma importância para Agostinho em sua tentativa de
dizer o tempo, que ele pensa não só em termos cosmológicos, como medida
de movimento, mas também como interioridade psíquica, “abrindo um novo
campo de reflexão: o da temporalidade, da nossa condição específica de
seres que não só nascem e morrem ‘no’ tempo, mas, sobretudo, que sabem,
que têm consciência dessa sua condição temporal e mortal”.
Em Agostinho, a alma é a sede das
capacidades humanas de compreensão, percepção, raciocínio, sentimento,
em suma, de todas as potencialidades do espírito. Da mesma forma, o
filósofo afirmou que a sede do tempo está na alma. Para entender isso é
preciso ter em mente a idéia de que o tempo faz parte da criação: o
tempo é criatura. Fora da criação existe somente a eternidade de Deus,
que consiste na imutabilidade, na ausência de tempo. A eternidade,
assim, não é tempo infinitamente prolongado, mas uma existência sem
nenhum limite, ao contrário de, por exemplo, a existência humana que é
uma distensão, cujas fronteiras são o nascimento e a morte. “É impróprio
afirmar que os tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas
talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas
passadas, presente das presentes, presente das futuras. Existem, pois,
estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança
presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e
esperança presente das coisas futuras.”
A Alma
Os tempos, como afirma Santo Agostinho,
existem na mente – o que em sua reflexão equivale a dizer na alma. O
passado não existe mais, só é possível na alma do ser humano, por meio
da memória. É essa potencialidade humana que permite que as coisas
passadas venham novamente à nossa presença. Apenas a recordação,
portanto, é que torna possível falarmos em tempo passado. O presente,
por sua vez, é o conjunto de nossas sensações e pensamentos do momento,
aquilo que percebemos diante de nós e o que estamos cogitando; é a
percepção e a consciência. Finalmente, o futuro é a resposta: nossas
previsões, nossas esperanças.
Os termos lembrança ou recordação,
percepção ou atenção e espera são muito bem traduzidos na seguinte fala
de Agostinho: “Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de
principiar, a minha expectação estende-se a todo ele. Porém, logo que
começar a minha memória dilata-se, colhendo tudo que passa de expectação
para o pretérito. A vida deste meu ato divide-se em memória, por causa
do que já recitei, e em expectação, por causa do que hei de recitar. A
minha atenção está presente e por ela passa o que era futuro para se
tornar pretérito. Quanto mais o hino se aproxima do fim tanto mais a
memória se alonga e a expectação se abrevia, esta que fica totalmente
consumida, quando a ação, já toda acabada, passa inteiramente para o
domínio da memória.”
Construção do “EU”
Desse modo, Agostinho, em todo momento,
antes de falar do tempo remete primeiramente à memória. É como se a
memória fosse um recurso que interiorizasse a temporalidade, os rastros
de algo que já não existe mais, mas que está presente. Se o passado já
se foi, o seu vestígio permanece atual na memória. O rastro é algo que
existe em ausência do outro, “é presença de uma ausência”, como diz
Derrida. Não há presença plena, nem uma ausência total. A imagem,
vestígio, permanece gravada mesmo depois que algo já passou. Por isso
Agostinho precisou da memória para falar do tempo.
A questão do tempo ainda permanece
obscura e controversa. Muitos autores que pensam sobre o tempo, pensam a
partir de Santo Agostinho. Como é o caso de Paul Ricoeur, em Tempo e
narrativa, que logo no início de seu texto diz: “A antítese principal em
torno da qual nossa própria reflexão vai girar encontra sua expressão
mais aguda lá no fim do Livro XI das Confissões de Santo Agostinho. Dois
traços da alma humana se acham aí confrontados, os quais o autor com
seu gosto marcante pelas antíteses sonoras dá o nome de intentio e de
distentio anumi”.
A análise agostiniana sobre o tempo, que
não é realizada apenas em termos cosmológicos, como medida de movimento,
mas também como inseparável da interioridade psíquica, é um elemento
importante para a constituição do eu ou do sujeito, pois o eu
agostiniano que começa a narrativa das confissões não é o mesmo que
conclui. O tempo é a produção da identidade e da diferença consigo
mesmo, pode ser ainda a dimensão de um sujeito que está se constituindo,
pois ele exerce um papel fundamental na consciência humana, uma vez que
tempo e consciência são indissociáveis.
Agostinho em seu estilo de fazer
Filosofia, de discutir questões, como o tempo, tão importantes para a
cultura ocidental, tornou-se um pensador que vale a pena ser lido e
discutido em muitas esferas do conhecimento. Neste sentido, concluímos
com Jeanne Marie Gagnebin: “Permanece a seguinte questão: hoje, quando
não podemos mais acreditar com a mesma certeza tranqüila que o Outro de
nosso tempo, seja a eternidade divina, como conseguir, porém, uma
compreensão diferenciada, inventiva da temporalidade – e da história! –
humana em suas diversas intensidades? Questão essencial, à qual o
pensamento teológico de Agostinho responde e à qual, em sua profundidade
radical, a reflexão contemporânea, seja ela histórica, poética, ou
filosófica, não pode se furtar.”
Por Ranis Fonseca de Oliveira
Ranis Fonseca de Oliveira é Mestre em Filosofia pela PUC/SP
FONTE: Portal Ciência & Vida
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