Ser Gagá não é viver apenas nos idos do passado: é muito mais! É
saber que todos os amigos já morreram e os que teimam em viver,
são entrevados. É sorrir, interminavelmente, não por necessidade
interior, mas porque a boca não fecha ou a dentadura é maior do
que a arcada.
Ser Gagá é
ficar pensando o dia inteiro em como seria bom ter trinta anos
ou, vá lá, quarenta, ou mesmo, ó Deus, sessenta! É ficar olhando
os brotinhos que passeiam, com o olhar esclerosado, numa inútil
esperança. É ficar aposentado o dia inteiro, olhando no vazio,
pensando em morrer logo, e sair subitamente, andando a meia hora
que o separa dos cem metros da esquina, porque é preciso
resistir. É dobrar o jornal encabulado, quando chega alguém
jovem da família, mas ficar olhando, de soslaio, para os íntimos
da coluna funerária. Ser Gagá é saber todos os mortos inscritos
no Time, em Milestones. Não é saber o Who is
who, mas os WHEN. É só pensar em comer, como na
infância. E em certo dia passar fome as vinte e quatro horas, só
de melancolia. É, na hora mais ativa do mais veloz Bang-Bang,
descobrir, lá no terceiro plano, uni ator antigo, do cinema
mudo, e sentir no peito a punhalada. É surpreender, subitamente,
um olhar irônico que trocam dois brotinhos, que, no entanto, o
ouvem seriamente. É querer aderir à bossa nova, falar “Sossega
Leão” e morrer de vergonha ao perceber o fora. É não querer, não
querer, mas cada dia ficar mais necessitado de amparo do que
outrora. É ter estado em Paris, em 19. É descobrir, de repente,
um buraco na roupa e dar graças a Deus, por ser na roupa.
Ser Gagá é
sentir plenamente que tudo que se leu, que se aprendeu, que se
viu e se viveu não vale nada diante do que estua. Ser Gagá é
estar sempre na iminência de ouvir em plena rua: “Olha o
tarado!” É ficar contente em ver Chaplin e Picasso como os “mais
charmosos” de sessenta! É chamar de menina à quarentona. É ter
uma esperança senil nos cientistas. É reparar, nos mais jovens,
o imperceptível sinal de decadência. É ficar olhando o detalhe,
nos amigos; a lentigem nas mãos, o cabelo que afina, a pele que
vai desidratando. Ser Gagá é o orgulho vão de ainda ter cabelo e
poucos brancos! A vaidade tola de não ter barriga; a felicidade
de ter dentes próprios. E fazer grandes planos qüinqüenais que
espantam os jovens que acham cinco anos a própria eternidade,
mas que o Gagá sabe que voam como voaram tantos, tantos, tantos.
É se apegar,
desesperadamente, pelo tremendo impulso da existência, aos
filhos, aos netos e aos bisnetos, embora saiba que eles não o
querem, que a convivência com eles é apenas parte e total do
egoísmo vital que o enterra. É sentir que agora, outra vez, está
bem de saúde. É sentir a saúde ocasional. É carregar o corpo o
tempo todo. É sentir o caixão no próprio corpo. É saber que já
não há quem tenha prazer em lhe acarinhar a pele. É já não ter
prazer em passar a mão na própria pele. É esquecer de coisas
importantes e lembrar, sem saber por que, um gosto, um calor,
uma palavra há tempos esquecidos.
Ser Gagá é
procurar com afã a importância do cargo para de novo ser
solicitado, embora pelo cargo. É sentir que nada do que faça,
espantoso que seja, terá a importância do feito de outro homem,
nos inícios da vida. Ser Gagá é quando dormir tarde se torna uma
loucura, resgatada em feroz resfriado que dura uma semana. É ter
sabido francês, e esquecido. É já não jogar xadrez como outrora!
É olhar o retrato amarelado e lembrar que fotógrafo usava
magnésio. É dizer, como um feito, que ainda lê sem óculos. É
ouvir que alguém diz, quando passa na rua: “inda está firme!” É
ficar galante e baboseiro na terceira taça de champanhe. É casar
com uma mulher mais jovem e querer dar logo ao mundo a inegável
prova de um filhinho.
Ser Gagá é, num
esforço mortal, aceitar tudo que inventam, todas as ideias, as
modas, a música, o ritmo de vida, mas não deixar de dizer numa
ironia profunda e amargurada. “Eu não entendo”. É sentir de
repente o isolamento. É ficar egoísta, e amedrontado. É não ter
vez e nem misericórdia.
Ser Gagá é
fogo. Ou melhor, é muito frio.
Texto extraído do livro “As Cem Melhores Crônicas Brasileiras”, editado pela Editora Objetiva, Rio de Janeiro - 2007, pág. 226.
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