Reza a lenda que numa certa tarde
sombria e invernal, na cidade de Göttingen, o filósofo Arthur Schopenhauer
vinha caminhando lentamente pela avenida, mergulhado em metafísicas
inquietações. Chuviscava, o chão estava cheio de poças dágua, e o filósofo se
deteve perto do meio-fio, esperando que diminuísse um pouco o entrecruzar de
cabriolés e tílburis sobre as pedras da rua. O espetáculo do mundo passava,
alheio à sua presença, e o filósofo deixou-se embalar por pensamentos, sem
notar sequer, em torno dos seus pés, uma poça dágua, visto que a chuva
continuava a cair, molhando seus cabelos e o seu casaco. Vendo aquela cena, e
notando as roupas puídas do transeunte, um policial de cassetete em punho
aproximou-se e o interpelou: “Quem é você? De onde vem, para onde vai? O que
está fazendo aqui?” Schopenhauer voltou-se lentamente para ele e respondeu:
“Que coisa interessante. Eu estava justamente perguntando a mim mesmo: Quem sou
eu? De onde venho, para onde vou? O que estou fazendo aqui?”
Os filósofos e os soldados de polícia
fazem as perguntas essenciais da razão de nossa presença na Terra. Todos temos
a obrigação de fazer essas perguntas, embora ninguém que seja sensato espere
respondê-las em algum momento. São perguntas que não procuram descobrir “a
resposta”, como numa charada ou numa adivinhação. O que essas perguntas
pretendem é, sendo formuladas a sete bilhões de pessoas, produzir sete bilhões
de respostas. Nenhuma delas mais verdadeira ou mais equivocada do que as
outras.
Jean-Paul Sartre contava em suas
memórias que durante a vida toda se sentiu um fingidor, uma fraude, um cara sem
direito de estar no mundo. Ele usava a imagem do sujeito que está viajando num
trem mas não tem o bilhete. “Passei a vida escrevendo livros,” dizia ele, “porque
se um dia o fiscal do trem viesse me pedir o bilhete, que continuo não tendo,
eu lhe mostraria os livros e diria: Estou na Terra com esta função.”
Todo
mundo está aqui para fazer alguma coisa. Mesmo o viciado da cracolândia sente
que precisa fumar crack todo dia, para justificar sua presença no mundo. Mesmo
um monge indiano que vive de jejum e meditação usa os dois como um bilhete para
exibir ao fiscal do trem. Bob Dylan dizia: “You gotta serve somebody”. Não
existe almoço grátis, e a vida é um banquete caríssimo e você tem que deixar
algo em troca. Vamos ter que fazer alguma coisa para responder aquelas quatro
perguntas. Podemos até nos recusar a respondê-las. Mas nenhum ser humano
consciente as ignora, nenhuma pessoa capaz de pensar escapou de fazer essas
perguntas a si mesmo em algum momento, e elas são perguntas para as quais é
preciso inventar respostas.
Bráulio
Tavares
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