Nudez
Nosso modo de ver mudou desde a invenção das imagens técnicas.
Lembremos do tempo do olho nu, quando se contemplava o céu como um
mistério, comparado aos dias atuais em que a astronomia avança na alta
tecnologia dos telescópios que nos dão as imagens inimagináveis de
planetas distantes. Comparemos nossa forma de ver quando alguma parte
exposta do corpo do outro se tornava escândalo tendo em vista que hoje
em dia as superfícies nuas dos corpos se tornam mercadorias banais.
Lembremos dos corpos dos indígenas, cuja nudez foi tão invejada, a ponto
de ser odiada e destruída…
Pensemos no avanço dos procedimentos visual-tecnológicos nos dias de
hoje e entenderemos a nudez em seu grau máximo: o feto visto dentro da
barriga da mulher grávida.
Nossa nudez atual não tem mais muito a ver com a antiga nudez.
Estamos nus por uma simples operação tecnológica que muda por completo o
que experimentamos como “Visão” e como “Nudez”.
E, apesar de tanta tecnologia que nos faria pensar que estamos livres
da superstição, ainda estamos na época do olho gordo. Para muitos isso
pode parecer uma contradição. Mas a hipótese mais interessante nos
propõe pensar se as tecnologias não especializaram essa nossa
“capacidade” arcaica…
Uma erótica política, uma política tanática
Nosso olho é órgão erótico. Em outras palavras, é um órgão do desejo.
E o desejo – em tudo parecido com a popular “curiosidade” – nos faz
buscar a nudez. A nudez era para os antigos filósofos, uma manifestação
da “verdade”, um des-velamento, que tinha a ver com abrir os olhos para
ver melhor, além, mais longe. Na época das ciências e tecnologias, a
verdade se tornou um conceito frio, ela é um efeito da investigação que
se contenta com o resultado imediato – e literal – da técnica. Parece
até que a técnica, em vez de nos ajudar a ver, e a pensar, nos impede,
ou nos livra de ver, e de pensar…
A visão – o ato de ver – é a manifestação de um desejo de ir além de
si. Isso quer dizer que a visão não é vazia, mas carregada de uma
dúvida. Por isso, ela encantou os filósofos desde o começo. Ora, quem
nunca abriu uma bonequinha russa para ver aquela outra que ela tem por
dentro de si? O desejo é como uma bonequinha russa que no seu vazio
carrega outra bonequinha russa. Isso explica a relação entre desejo e
olhar: quando vejo, desejo a bonequinha russa que esta dentro da
bonequinha russa. O desejo gosta da surpresa, realiza-se na novidade, e
quando se acostuma a ela, quer mais.
Se é verdade que o desejo é desejo do outro, isso só pode querer
dizer que o desejo do outro está sempre além do outro. É o que eu espero
nele, mas além dele. Por isso, quando amo, amo o desejo do outro, o
desejo que o outro tem por outros, por outras coisas, até o desejo que o
outro possa ter por algo que sou “eu mesmo”. E há algo de espantoso, de
surpresa nisso. No campo do desejo trocamos desejos de desejos.
Oferecemos desejos, oferecemos o desejar em geral. A vida das relações
humanas é feita disso, desse desejar incessante. De um movimento erótico
que é, em si mesmo, um movimento alegre, que tem mais a ver com a
potência da alegria da qual falava Spinoza, do que com a armadilha do
sexo com que toda uma cultura confundiu a simples alegria de viver (na
qual o sexo é apenas parte e não pode ser o todo) que define o que estou
chamando aqui de “erótica”. E podemos falar de uma erótica da vida em
geral. E essa erótica é sempre política, porque tem a ver com o que
fazemos uns com os outros. Uma tanática política é todo um momento de
impotência como o que vivemos hoje.
Por isso, talvez não haja nada mais triste do que a ausência de
desejo. O desejo é a nossa potência, o que nos faz ir além do que somos
e, desse modo, nos permite estar em nós. Assim: somos essa tensão que
não se contém em si e por isso mesmo permanece contraditoriamente
inteira enquanto está em falta.
Administração da inveja como um meio para a burrice.
Mas já não vivemos tempos eróticos. Vivemos tempos “tanáticos”. Lembro aqui da oposição clássica entre Eros e Tanatos (vida e morte) que faz parte do pensamento psicanalítico e que tem tudo a ver com a oposição spinoziana entre alegria e tristeza, entre potência e impotência.
O momento “tanatológico”, esse contrário desejo de morte, ou desejo
de tristeza, ou impotência para a alegria, que vivemos agora, tem tudo a
ver com a impotência das impotências caracterizada pela inveja. Talvez
possamos entender como chegamos a este estado de fascistização da
sociedade e da mentalidade entendendo o elo nefasto entre a produção
social da burrice – não como ignorância filosófica, aberta e generosa,
como é sempre bom deixar claro, mas como ignorância prepotente, fechada e
autoritária – e a administração da inveja como um meio para a burrice.
Em nossa época poderíamos dizer que a publicidade e a televisão
administram o desejo, nos fazendo comprar, votar e crer. Mas justamente
comprar o que não precisamos, votar em quem não nos representa, crer no
que não cremos, nos deve fazer pensar em uma estranha forma de viver
esse “desejo”.
Se nosso desejo está administrado, é bem provável que ele tenha se
tornado alienado. E desse modo, impotente. E assim como a inteligência
impotente chama-se burrice, o desejo impotente chama-se inveja.
Ora, entre a inteligência e o desejo há uma correspondência. Do mesmo
modo entre a burrice e a inveja. A burrice é alcançada por tentativas
frustradas do desejo de conhecer. Diante de respostas ou de estímulos
negativos à nossa inteligência como capacidade de investigar o mundo, o
outro, a sociedade, como busca por entender, como desejo de nudez, somos
“tapados”; nossos olhos que desejariam ver mais longe, ampliar sua
visão de mundo, são tapados, encobertos, enceguecidos, nublados, com
véus finos até muros cimentados, até o cimento da morte que é a “burrice
máxima” em termos cognitivos e políticos. Que o poder atual se valha
dela, é uma questão também administrativa.
Podemos, por isso, dizer que a televisão e a publicidade (às quais a
experiência política e religiosa estão atreladas ao nível das
instituições), administram, na verdade, a inveja.
Inveja é desejo impotente, é desejo cancelado, mutilado. Assim como a
burrice é uma mutilação cognitiva e moral, a inveja é uma categoria que
precisa ser vista de um ponto de vista moral e cognitivo. Ela é, assim,
como a burrice, produzida e manipulada.
A nossa dificuldade de aprender certas coisas vem da produção da
burrice por meio da inveja. Todo indivíduo inteligente é desejante. Todo
indivíduo cognitivamente impotente é invejoso.
Importência
Quando sentimos inveja nos sentimos “burros”, mas ocultamos isso. Há
uma estranha realização nisso. A contraditória realização que nos traz
toda irrealização. Somos despreparados para o desejo do outro porque
somos despreparados para o outro. Somos preparados para o desejo do
outro pelo rosto espelhado do outro. Desde pequenos temos que ser
olhados e convidados à linguagem pelo outro. Mas podemos ser mal
recebidos, o outro pode se apresentar a nós como uma promessa não
cumprida. Então nos tornamos fechados para ele.
Então nos contentamos com o mero ver o rosto do outro como um outro e
não como um espelho. Eu invejo aquilo que eu nego como espelho.
Não se trata no ver da “inveja” de uma contemplação do rosto do outro
(da sua identidade, do seu modo de vida). Aliás, a contemplação é da
ordem do pensamento aberto, filosófico, meditativo. Ela requer uma
postura diante do espelho que sempre experimentamos diante de qualquer
pessoa que nos olha ou que poderia nos olhar. Pensar é ter a noção da
distância com esse rosto. é perceber a diferença. A inveja não possui
essa chance de pensamento. Falta-lhe espelho, logo falta distância ou
tudo parece distância, o que dá no mesmo.
O olho do invejoso está morto para o outro, parado, destrói no ato
mesmo de ver. Ele vê o outro como um morto. E destrói por sua
impotência. Destrói porque a impotência em si mesma é destrutiva, já é
desejo destruído antes de ter nascido. Onde algo deveria existir, onde
algo deveria nascer, onde algo novo poderia surgir, é antes devorado
pela força da pura impotência. Fingindo-se de morto, ele se dá ares de
“importência”, um misto de importância com impotência, que mascara a dor
de não poder ser nada senão alguém que queria ser o outro que ele julga
estar melhor do que ele, completo, total.
Assim diante das vitrines, das televisões, das telas dos celulares,
nos tornamos “importentes”. Então compramos, votamos, e praticamos
outras aberrações da crença.
É na etimologia da palavra que está guardada a sua verdade histórica. Invidia, mais que falta – a falta do seio da mãe que amamenta o irmão nas Confissões
de Agostinho – põe em jogo algo como um excesso de ver. Esse excesso de
ver que não deixa espaço para a dúvida, essa “gordura” de quem devora
tudo, sem deixar espaço vazio para a digestão que é o pensamento
reflexivo – o ruminar de que falava Nietzsche – é a forma básica da
inveja.
Uma cultura em que a inveja se tornou o afeto regulador da vida só pode dar em fascismo.
Invidia ou uma visão de merda: sinais para pensar mais
Santo Agostinho nos dá de uma vez a fórmula do ver e da inveja: “video, sed non invideo”, se vejo, mas não in-vejo
é porque vejo na medida dos meus olhos, porque meu olhar não é mais que
a visão que contempla. Não invejar é o desafio. Por que a inveja
implica querer tomar o lugar do outro. Ver é externo à coisa. Ver é
tátil, tangencia àquilo com que se relaciona. O simplesmente ver define
que há olhos abertos ao outro em busca de informação, reflexão,
pensamento. A inveja não se contenta com o contemplar, ela quer mais,
ela quer devorar com o olho.
A mistura da função do olho com a função da boca, essa “fome do olho”
(sobre a qual falei em meu Olho de Vidro) é uma fome insaciável. Ela é a
própria inveja. No caso das tecnologias visuais que nos atacam com
obsessão na viciante cultura do espetáculo (nos termos da sociedade
fissurada), define a inveja como uma espécie de fome louca em relação à
qual temos aquele efeito de “larica” que nos faz querer mais sem poder
usufruir do prazer de comer, porque a fome artificial, produzida por um
droga, devorou todo prazer.
O olhar que caracteriza a inveja como uma função não é só análogo à
boca, mas também ao furo anal. Ela tem relação com o ato de reter aquilo
que não quer perder. Lembro do meu “olho de vidro”, a metáfora para a
televisão como prótese de conhecimento. Assim o “olho de vidro” que é a
televisão (esse aparelho pedagógico da inveja) é, como no sonho do Homem
dos ratos de Freud, aquilo que se põe no lugar dos olhos. O homem dos
ratos via excrementos no lugar dos olhos da filha de Freud. Segundo
Freud, o estrume no lugar dos olhos da garota mostrava o desejo do homem
dos ratos. Ele se casava por dinheiro muito mais do que por seus “belos
olhos”. O fato de que ele visse os olhos com estrume informa-nos que
ele fantasiava esses olhos como ânus (lembremos de Bataille e sua
“História do olho”). A fantasia necessariamente informa de um desejo,
mas além do desejo anal, e do erotismo anal sobre o qual podemos
hipotetizar, muito mais o que surge é a passagem entre uma coisa e
outra: “vir para fora do reto pode ser representada pela noção oposta de
mover-se para dentro do reto (…) e vice-versa”. Em resumo, nesse
registro, a inveja seria uma visão de merda.
O estrume é ele mesmo a prótese, como o dinheiro é prótese,
substituto ideal – e por isso universal – de objetos e coisas em geral
que, diante dele se tornam meras mercadorias. A inveja é este olhar que
retém fezes como um orifício anal, como um cofrinho retém moedas.
Aquilo que não se quer perder deve ser devotado aos olhos. A cultura
visual é uma cultura da retenção, do medo à perda, da evitação do luto
das coisas que senso vistas, são guardadas como coisas mortas. A inveja
é, assim, espécie e olhar que não deixa de ver por medo de perder o
visto. Invejoso que sou, agarro com meu olho, como com meus olhos.
Retenho a minha merda, um mundo que transformei em merda. Um mundo de
mercadorias. Mau uso do órgão criativo que é o ânus…
A inveja primeiro é pensada como uma cobiça, como anseio em obter
pelo ver, em possuir pelo ato de ver, possuir aquilo que o ânus, ele
mesmo oco, possui. A inveja é o olhar transformado em pura
intencionalidade, não um olhar que tangencia a coisa, mas
ontologicamente a devora para dentro de si e a vomita. Olho devorador e
bulímico. A inveja é, assim, não apenas, um olhar que penetra, que
invade, mas que, invadindo, elimina tomando para si aquilo que quer
negar no instante mesmo de seu gesto secreto.
O olhar que devora as coisas é devorado pela tecnologia que dele
apreende o modo de ser e o reproduz devolvendo-o na forma de uma prótese
que imita o corpo a que deve servir. Foi a natureza do olho que se
modificou no processo, ele mesmo invejoso da própria tecnologia. O
orgânico olho humano foi devorado no ato de ser informado pelas
tecnologias, elas mesmas informadas por teorias que derivam de um gesto:
de um olhar. Não apenas o olho devora, mas ele mesmo é o resultado de
uma evisceração. Como se o olho que imita o olho tecnologicamente
tivesse sido reimplantado no corpo humano. O olho humano não é mais puro
olho.
Olho devorador, somos todos convidados à glutonaria ótica própria do
tempo do visual sintetizado na publicidade como forma de vida. É ela
hoje o sistema que nos convida à inveja programada diariamente para nos
impedir de contemplar e de, assim, desejar verdadeiramente.
A política de hoje tem tudo a ver com isso.
Melhorar o nosso olhar é o que nos cabe antes que tenhamos devorado
uns aos outros pelos olhos e aniquilado nossa chance política.
Márcia Tiburi
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