Michel Foucault agia como um luminoso ator do pensamento. Titular da cátedra do Collège de France de 1971 até o ano de sua morte (1984), encarnava um ritual cênico: acendia uma luminária, afastava os gravadores e começava a falar com a coerência de quem escreve. Vivia a sala de aula como palco de ebulição e idéias, apresentando em primeira mão as novidades de sua pesquisa. Nas vinte e seis horas anuais de curso, criava em público, assim como fizera Jean Hippolyte que o antecedera. Essas aulas de Foucault tornaram-se míticas. Conta-se que mais de quinhentas pessoas disputavam espaço em um anfiteatro de trezentos lugares para assistir a verdadeira performance de gênio. O que chamava atenção no teatro-Foucault era a precisão na exposição de uma vasta e corajosa investigação em curto espaço de tempo. O tamanho do gênio estava à mostra ao fazer da rotina de aulas o momento magno que anunciava a mudança dos rumos do pensamento do século XX e do século que vemos nascer.
Foucault foi um dos maiores filósofos do século XX. A grandiosidade de seu pensamento revela-se na ordem estritamente teórica de seu pensamento ao momento pragmático estabelecido nas ressonâncias de sua teoria. Este último se vê no fato a cada dia ainda experimentado por professores, alunos e estudiosos em contato com sua obra, da reunião que conseguiu estabelecer entre as diversas ciências. As ciências humanas, cuja concepção ele ajudou a forjar, tornam-se resultado dos saberes entrelaçados no tempo e dos modos como armam-se em estruturas de poder. A interrelação entre saber e poder permitirá conhecer a chamada “invenção do homem”, uma das idéias críticas do pensador que cavava nos documentos e livros mais inabituais da história a sua verdade recôndita ou mesmo oculta.
História dos Sistemas de Pensamento fora o nome sintético que aglomerou a preocupação em estabelecer pela descoberta o processo de fundação do saber ocidental. No famoso livro As Palavras e as Coisas, Foucault declarou radicalmente essa intenção de analisar o que ele chamou a “experiência nua da ordem”. Essa experiência fará a diferença entre o uso dos códigos ordenadores dentro dos quais vivemos e as reflexões sobre a ordem realizada por teóricos e que estabelecerá o projeto de uma “arqueologia do saber”, diferente de uma história das idéias ou das ciências. O projeto arqueológico – o período de trabalho de Foucault entre 1961 e 1969 – baseou-se na alteração da noção de história para além da noção de progresso rumo ao futuro ou ao passado, procurando o contexto e a fonte onde as condições de possibilidade das teorias e conhecimentos, filosofias e racionalidades, idéias e conceitos deixavam-se desenhar fundando uma noção do “homem” – como objeto e como sujeito - que marca até hoje a história e a investigação científica. Foucault pesquisava a falta, o desvio, o desconhecido procurando entender as tramas invisíveis e os silêncios da história.
A arqueologia foucaultiana propõe um método no mais adequado sentido do termo, um modo de olhar que altera a todo momento seus princípios e que, por isso, não pode valer como medida de toda a história que se impõe como busca pelo saber de qualquer objeto. A arqueologia ensina ainda hoje a olhar cada objeto respeitando a sua verdade e construindo um discurso a partir da observação. O discurso da arqueologia vem do objeto, não é o objeto que vem do discurso, sendo construído por ele. A História da Loucura, talvez o livro mais conhecido de Foucault, inaugura essa fase arqueológica – conclusa em A Arqueologia do Saber de 1969 - como experiência do pensamento do próprio Foucault, no qual a atenção ao objeto da investigação faz falar o método. O método é a exposição do olhar que se esforça por deixar de ser olhar para atingir a coisa com a palavra disponível. A filosofia de Foucault será próxima da literatura enquanto procura do silêncio contido nas palavras e na linguagem.
A História da Loucura não é apenas uma história da psiquiatria ou de seu surgimento, mas uma investigação sobre o enclausuramento do louco, a sua reclusão em um espaço manicomial, para realizar, paradoxalmente, sua exclusão. A intenção do livro é mais que explicar uma história cronológica ou progressiva da loucura, entender a relação entre a modernidade e a loucura que continuará sendo desenvolvida no livro O Nascimento da Clínica. O que Foucault irá descobrir é que a doença mental tem menos de duzentos anos e que o louco foi patologizado pela psiquiatria apenas a partir do século XVIII, ou seja, medido a partir de uma ordem da razão da qual essa ciência recente fazia parte. A partir de A História da Loucura, tornou-se possível compreender o processo de inclusão concomitante à exclusão do louco, sua inscrição como objeto do poder da razão que separa e exclui de si o que a nega, instaurando um “outro” num gesto historicamente repetitivo que precisava ser avaliado. A História da Loucura era – pelo avesso - a história da razão, esta a medida que instaurara, já na época da Renascença, o valor real e prático de uma questão anteriormente apenas simbólica: a nau dos insensatos, narrativa das mais curiosas com a qual Foucault começa seu livro e que explica como loucos eram escorraçados de suas cidades indo parar em outras plagas até que o manicômio veio a fixar-lhe a âncora. Estes e outros temas entram na análise da produção da loucura que passa de viagem andarilha à doença mental e anormalidade a ser execrada. Este livro deixa uma brecha teórica que fundará o restante do pensamento foucaultiano.
A etapa arqueológica que investigava sobre o saber foi seguida pela genealogia - termo que Foucault empresa de Nietzsche. Se a primeira explicava “como” apareciam os saberes e suas transformações, a genealogia situava-se em torno do desvendamento do “porquê” sobre os saberes inseridos na ordem política, ou seja, pensando-os na conexão com as relações de poder. Livros como Vigiar e Punir de 1975 e a História da Sexualidade que tem seu primeiro volume A Vontade de Saber publicado em 1976, revelam esse novo tema. O poder passa a ser o eixo a partir do qual pode-se compreender o surgimento dos saberes. Poder não é uma essência ou uma unidade interpretativa da realidade, mas uma prática social que se constitui na história. Toda análise derivada de um objeto tão mutável quanto o poder deveria estar atenta à mutabilidade do próprio processo. Poder, para o filósofo, são práticas ou relações, não somente o Estado, este apenas um articulador do poder, ao lado das demais instituições. O poder se realiza na vida pragmática de uma sociedade e formula-se em técnicas de dominação. Nesse aspecto o corpo do indivíduo é o lugar especial onde o poder vai realizar-se. A história do saber ali define-se como “história dos corpos” e estes são analisados em sua submissão a uma “microfísica do poder”. Um poder exercido em escala social precisa ter sua realização concreta na produção e controle do indivíduo: ele será a disciplina exercida sobre esse indivíduo no controle de seus gestos, hábitos, comportamentos, discursos. Atomizado na sociedade e servindo, ao mesmo tempo, a um mecanismo magno que não tendia a expulsar os homens da vida social, mas antes administrar e ordenar seus cotidianos com objetivos políticos e econômicos, o poder é o nome da manipulação do corpo. O poder foi – e é - a disciplina aplicada aos corpos. Talvez toda disciplina seja sempre disciplina do corpo. Por isso, Foucault analisará o modo como seres humanos se relacionaram a seus corpos e, na História da Sexualidade, como esta foi o eixo de um poder disciplinar que produziu uma das mais curiosas reviravoltas nas concepções mais avançadas sobre sexo que talvez nem suspeitemos. Em vez de pensar o sexo segundo clichê da libertação e da revolução, na soberania da lei do sexo como produção da subjetividade livre, Foucault apresenta uma de suas idéias mais corajosas: como que um lado perverso do dispositivo social da sexualidade que nos faz crer que nela está a nossa liberação enquanto nos submete aos seus mecanismos. Nesse ponto, vemos ainda a atualidade da análise de Foucault num tempo em que pornografia e censura ainda comandam o destinos de nossa sociedade enquanto ocultam-se de nosso olhar. A teoria de Foucault, vinte anos após sua morte, causa-nos um espanto que será ainda maior quando pudermos perceber a enormidade do alcance de sua investigação como diagnóstico do que vivemos, do que somos, do que deixamos de ser, do modo como inventamos a nós mesmos.
Foucault foi um dos maiores filósofos do século XX. A grandiosidade de seu pensamento revela-se na ordem estritamente teórica de seu pensamento ao momento pragmático estabelecido nas ressonâncias de sua teoria. Este último se vê no fato a cada dia ainda experimentado por professores, alunos e estudiosos em contato com sua obra, da reunião que conseguiu estabelecer entre as diversas ciências. As ciências humanas, cuja concepção ele ajudou a forjar, tornam-se resultado dos saberes entrelaçados no tempo e dos modos como armam-se em estruturas de poder. A interrelação entre saber e poder permitirá conhecer a chamada “invenção do homem”, uma das idéias críticas do pensador que cavava nos documentos e livros mais inabituais da história a sua verdade recôndita ou mesmo oculta.
História dos Sistemas de Pensamento fora o nome sintético que aglomerou a preocupação em estabelecer pela descoberta o processo de fundação do saber ocidental. No famoso livro As Palavras e as Coisas, Foucault declarou radicalmente essa intenção de analisar o que ele chamou a “experiência nua da ordem”. Essa experiência fará a diferença entre o uso dos códigos ordenadores dentro dos quais vivemos e as reflexões sobre a ordem realizada por teóricos e que estabelecerá o projeto de uma “arqueologia do saber”, diferente de uma história das idéias ou das ciências. O projeto arqueológico – o período de trabalho de Foucault entre 1961 e 1969 – baseou-se na alteração da noção de história para além da noção de progresso rumo ao futuro ou ao passado, procurando o contexto e a fonte onde as condições de possibilidade das teorias e conhecimentos, filosofias e racionalidades, idéias e conceitos deixavam-se desenhar fundando uma noção do “homem” – como objeto e como sujeito - que marca até hoje a história e a investigação científica. Foucault pesquisava a falta, o desvio, o desconhecido procurando entender as tramas invisíveis e os silêncios da história.
A arqueologia foucaultiana propõe um método no mais adequado sentido do termo, um modo de olhar que altera a todo momento seus princípios e que, por isso, não pode valer como medida de toda a história que se impõe como busca pelo saber de qualquer objeto. A arqueologia ensina ainda hoje a olhar cada objeto respeitando a sua verdade e construindo um discurso a partir da observação. O discurso da arqueologia vem do objeto, não é o objeto que vem do discurso, sendo construído por ele. A História da Loucura, talvez o livro mais conhecido de Foucault, inaugura essa fase arqueológica – conclusa em A Arqueologia do Saber de 1969 - como experiência do pensamento do próprio Foucault, no qual a atenção ao objeto da investigação faz falar o método. O método é a exposição do olhar que se esforça por deixar de ser olhar para atingir a coisa com a palavra disponível. A filosofia de Foucault será próxima da literatura enquanto procura do silêncio contido nas palavras e na linguagem.
A História da Loucura não é apenas uma história da psiquiatria ou de seu surgimento, mas uma investigação sobre o enclausuramento do louco, a sua reclusão em um espaço manicomial, para realizar, paradoxalmente, sua exclusão. A intenção do livro é mais que explicar uma história cronológica ou progressiva da loucura, entender a relação entre a modernidade e a loucura que continuará sendo desenvolvida no livro O Nascimento da Clínica. O que Foucault irá descobrir é que a doença mental tem menos de duzentos anos e que o louco foi patologizado pela psiquiatria apenas a partir do século XVIII, ou seja, medido a partir de uma ordem da razão da qual essa ciência recente fazia parte. A partir de A História da Loucura, tornou-se possível compreender o processo de inclusão concomitante à exclusão do louco, sua inscrição como objeto do poder da razão que separa e exclui de si o que a nega, instaurando um “outro” num gesto historicamente repetitivo que precisava ser avaliado. A História da Loucura era – pelo avesso - a história da razão, esta a medida que instaurara, já na época da Renascença, o valor real e prático de uma questão anteriormente apenas simbólica: a nau dos insensatos, narrativa das mais curiosas com a qual Foucault começa seu livro e que explica como loucos eram escorraçados de suas cidades indo parar em outras plagas até que o manicômio veio a fixar-lhe a âncora. Estes e outros temas entram na análise da produção da loucura que passa de viagem andarilha à doença mental e anormalidade a ser execrada. Este livro deixa uma brecha teórica que fundará o restante do pensamento foucaultiano.
A etapa arqueológica que investigava sobre o saber foi seguida pela genealogia - termo que Foucault empresa de Nietzsche. Se a primeira explicava “como” apareciam os saberes e suas transformações, a genealogia situava-se em torno do desvendamento do “porquê” sobre os saberes inseridos na ordem política, ou seja, pensando-os na conexão com as relações de poder. Livros como Vigiar e Punir de 1975 e a História da Sexualidade que tem seu primeiro volume A Vontade de Saber publicado em 1976, revelam esse novo tema. O poder passa a ser o eixo a partir do qual pode-se compreender o surgimento dos saberes. Poder não é uma essência ou uma unidade interpretativa da realidade, mas uma prática social que se constitui na história. Toda análise derivada de um objeto tão mutável quanto o poder deveria estar atenta à mutabilidade do próprio processo. Poder, para o filósofo, são práticas ou relações, não somente o Estado, este apenas um articulador do poder, ao lado das demais instituições. O poder se realiza na vida pragmática de uma sociedade e formula-se em técnicas de dominação. Nesse aspecto o corpo do indivíduo é o lugar especial onde o poder vai realizar-se. A história do saber ali define-se como “história dos corpos” e estes são analisados em sua submissão a uma “microfísica do poder”. Um poder exercido em escala social precisa ter sua realização concreta na produção e controle do indivíduo: ele será a disciplina exercida sobre esse indivíduo no controle de seus gestos, hábitos, comportamentos, discursos. Atomizado na sociedade e servindo, ao mesmo tempo, a um mecanismo magno que não tendia a expulsar os homens da vida social, mas antes administrar e ordenar seus cotidianos com objetivos políticos e econômicos, o poder é o nome da manipulação do corpo. O poder foi – e é - a disciplina aplicada aos corpos. Talvez toda disciplina seja sempre disciplina do corpo. Por isso, Foucault analisará o modo como seres humanos se relacionaram a seus corpos e, na História da Sexualidade, como esta foi o eixo de um poder disciplinar que produziu uma das mais curiosas reviravoltas nas concepções mais avançadas sobre sexo que talvez nem suspeitemos. Em vez de pensar o sexo segundo clichê da libertação e da revolução, na soberania da lei do sexo como produção da subjetividade livre, Foucault apresenta uma de suas idéias mais corajosas: como que um lado perverso do dispositivo social da sexualidade que nos faz crer que nela está a nossa liberação enquanto nos submete aos seus mecanismos. Nesse ponto, vemos ainda a atualidade da análise de Foucault num tempo em que pornografia e censura ainda comandam o destinos de nossa sociedade enquanto ocultam-se de nosso olhar. A teoria de Foucault, vinte anos após sua morte, causa-nos um espanto que será ainda maior quando pudermos perceber a enormidade do alcance de sua investigação como diagnóstico do que vivemos, do que somos, do que deixamos de ser, do modo como inventamos a nós mesmos.
Márcia Tiburi
Publicado no Caderno Cultura do Jornal Zero Hora de 12 de Junho de 2004. Página 8.
3 comentários:
Já que o título deste texto é a invenção do homem; tenho uma teoria com base bíblica que Deus não criou inicialmente um homem. ou seja, com orgão sexual masculino; e ser um ser humano desprovido de sexo. pois, basta você ler em Gênesis que, apo´s ter criado todas as coisas e inclusive o """homem""" ele disse : Não é bom que o homem permaneça só...farei para ti uma ajudadoura (no caso a mulher) e então só depois teria criado eva. Ora, o que parece é que no principio. Deus não tinha como objetivo a perpetuação da espécie humana; pois só depois de criar eva ele diz: crescei e mutiplicai e enchei a terra...obviamente, o homem passa a ter testiculos e pênis quase que simultâneamente com a criação da mulher. (Deixo de escrever os versículos de Gênesis porque quero que o amigo leitor examine na sua própria Bíblia, não importa a tradução). Isso não muda em nada de que Deus teria criado primeiro o homem; porém o mesmo só veio surgir após o "sono profundo" para que o mesmo pudesse ter a capacidade de procriação junto a mulher que lhe foi criada fruto de sua costela para lhe ser complemento. (EXCLUSIVO PARA ESTE BLOG). Gostaria ainda de fazer uma pequena colocação quanto alguns quadros de famosos pintores renascentistas que trazem Adão e Eva; onde eu acho que eles não tinham umbigo, mas essa é uma outra história que fica para uma próxima oportunidade
Já que o título deste texto é a invenção do homem; tenho uma teoria com base bíblica que Deus não criou inicialmente um homem. ou seja, com orgão sexual masculino; e sim um ser humano desprovido de sexo. pois, basta você ler em Gênesis que, após ter criado todas as coisas e inclusive o """homem"""(na verdade um ser hibrido), ele disse : Não é bom que o homem permaneça só...farei para ti uma ajudadoura (no caso a mulher) e então só depois teria criado eva. Ora, o que parece é que no principio, Deus não tinha como objetivo a perpetuação da espécie humana; pois só depois de criar eva ele diz: crescei e mutiplicai e enchei a terra...obviamente, o homem passa a ter testiculos e pênis quase que simultâneamente com a criação da mulher. (Deixo de escrever os versículos de Gênesis porque quero que o amigo leitor examine na sua própria Bíblia, não importa a tradução). Isso não muda em nada de que Deus teria criado primeiro o homem; porém o mesmo só veio surgir após o "sono profundo" para que o mesmo pudesse ter a capacidade de procriação junto a mulher que lhe foi criada fruto de sua costela para lhe ser complemento. (EXCLUSIVO PARA ESTE BLOG). Gostaria ainda de fazer uma pequena colocação quanto alguns quadros de famosos pintores renascentistas que trazem Adão e Eva; onde eu acho que eles não tinham umbigo, mas essa é uma outra história que fica para uma próxima oportunidade
Particularmente eu gosto muti do foucault. Estu lendo o seu livro intitulado "arqueologia do saber" e estou achando muito bom. complexo um pouco mas vou aprendendo.
e quando vejo alg sobre ele fico até contente por ler.
abraços e boa sorte!
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