domingo, 7 de março de 2010

A Canção e a Lenda da Cabocla Maringá

A obra musical deixada pelo compositor e médico mineiro Joubert Gontijo de Carvalho (1900-1977), repleta de valsas, marchas e sambas, revela imensa influência da cultura popular. Já no início da década de trinta, esse sensível artista emplacou seu primeiro grande sucesso: a famosa marchinha carnavalesca Taí (Pra Você Gostar de Mim), gravada por uma então pouco conhecida menina de vinte anos chamada Carmen Miranda. Foi o início exitoso da nossa brazilian bombshell.

Era uma fase da nossa música em que os compositores urbanos investiam nos chamados gêneros regionais populares e outra composição do talentoso mineiro fez muito sucesso ainda em 1931: Zíngara. Pelo seu pioneirismo – em estilo também regionalista – abordando um tema bastante explorado posteriormente no nosso cancioneiro popular, a seca do Nordeste, Maringá (1932) acabou se tornando a mais expressiva das composições de Joubert de Carvalho. Foi seu maior sucesso e acabou dando nome a uma hoje grande cidade do estado do Paraná. Recebeu dezenas de gravações (inclusive no exterior), tendo seu êxito em grande parte se devido à gravação primitiva do tenor paulista Gastão Formenti (1894 – 1974) e às excelentes interpretações do cantor de voz canora Carlos Galhardo (1913 – 1985), que a gravou por duas vezes em 1939 e 1957.

O folclore sertanejo é riquíssimo e precisam ser resgatadas com grande interesse as lendas esquecidas com a névoa do tempo e pelos efeitos da aculturação, a exemplo da história (ou estória?) transmitida de boca em boca de Maria, uma cabocla sensual que migrou da região do Ingá (no Agreste paraibano), para a cidade de Pombal (Sertão da Paraíba) em uma grande seca ocorrida no século XIX. Reza a tradição que na famigerada estiagem de 1877, Maria deixou Pombal e procurou novas paragens, deixando naquele longínquo rincão sertanejo um caboclo apaixonado e com lágrimas nos olhos.

Considerando a riqueza da cultura popular no sertão, da qual era admirador e grande conhecedor, o dr. Ruy Carneiro (1901 – 1977) – no tempo em que exercia a chefia de gabinete do Ministério da Viação – encontrou no Rio de Janeiro Joubert de Carvalho. O político sertanejo falou-lhe sobre a lenda de Maringá (designação popular de Maria do Ingá, naquele momento ainda não conhecida por Joubert) e pediu-lhe para musicar a emocionante trajetória da linda cabocla que abalou a ribeira do Piranhas. A canção Maringá tem uma curiosa história. Era muito amigo de Joubert de Carvalho o senhor Jaime Távora, então secretário do paraibano José Américo de Almeida (1887 – 1980), na época ministro da Viação do presidente Getúlio Vargas e grande apreciador da música do compositor mineiro (a quem ansiava conhecer pessoalmente). Távora comentou com Joubert sobre a vontade do Ministro, no que – em tom de pilhéria – ouviu: Ora, se ele tem tanta vontade de me conhecer que vá lá em casa.

Tal informação foi passada por Távora a José Américo que, para grande surpresa de Joubert, resolveu fazer-lhe uma visita em sua residência no Rio de Janeiro. Com o ministro também seguiram para o encontro o político pombalense Ruy Carneiro e alguns amigos. Joubert queria conseguir com José Américo um lugar de médico no prestigiado Instituto dos Marítimos e falou do seu desejo a Ruy, que lhe assegurou: É fácil, peça você mesmo {...} Por que você não faz uma canção falando dessa tristeza que há no Nordeste, dessa falta de água, lá não chove...Faça uma canção assim. Joubert imediatamente foi inspirado pela imagem da seca e disse para o ilustre pombalense que acabava de vislumbrar o drama de uma cabocla partindo numa leva, deixando para trás um caboclo a chorar. Chamava-se Maria (nome popularíssimo no Nordeste). Quis saber a cidade berço do ministro José Américo. Areia, disse-lhe o político paraibano. O compositor achou que Areia não dava boa rima. Quis saber a terra natal de Ruy: Pombal. Não satisfeito, Joubert quis saber dele onde a estiagem era mais rigorosa nas terras da Paraíba. Ruy citou-lhe vários lugares, dentre os quais o município de Ingá. Joubert exultou: Então é a Maria do Ingá. Naquela noite, na presença de Ruy Carneiro, de José Américo de Almeida, de Jaime Távora e de outros amigos a música foi composta. O título da canção Maringá (fusão ou corruptela romântica adotada pelo compositor por exigências métricas da composição) foi gravada em 1932, conforme já dito, pelo antigamente famoso tenor Gastão Formenti, tornando-se sucesso internacional e um clássico do nosso cancioneiro popular, levando a personagem e a cidade de Pombal ao conhecimento do público e, principalmente, fazendo com que o drama da seca comovesse a todos que desconheciam a realidade do Nordeste.

Usurpada indevidamente pelos paranaenses da cidade de Maringá (nomeada em homenagem à famosa canção), os quais não possuem nenhum direito histórico ou geográfico sobre o que retrata a música eternizada pela emocionante genialidade do dr. Joubert de Carvalho que, atendendo ao apelo e à inspiração de Ruy Carneiro, transformou Maringá num verdadeiro hino do povo pombalense. O que o poema tematiza diz respeito somente à cidade de Pombal e à realidade sertaneja, bastando-nos analisar alguns de seus belos versos: Foi numa leva que a cabocla Maringá/ Ficou sendo a retirante que mais dava o que fala/ E junto dela veio alguém que suplicou/ Pra que nunca se esquecesse de um caboclo que ficou. Este trecho demonstra que, em tese, não há a menor relação da mensagem poética com a cidade paranaense de Maringá, a qual nunca foi constituída por caboclos, como o sertão da Paraíba (notar a ênfase do registro da fala do homem popular – fala ao invés da forma infinitiva falar), e sim por uma população de origem européia que, em sua maioria, certamente desconhece as levas de retirantes tão típicas dos freqüentes períodos de seca do Nordeste brasileiro.

Contrariamente, o estado do Paraná tem o privilégio de não sofrer as estiagens que chegam a expulsar o homem nordestino do campo. Na realidade, a canção ficou lá conhecida apenas devido ao fato de ter sido com muita freqüência cantada nas horas de labuta e de lazer pelos operários da construção civil, nordestinos que, fugindo do flagelo da seca, migravam para aquele rico estado brasileiro em busca de trabalho. Explicando que esse produto formidável da genuína cultura popular é por extensão patrimônio do povo brasileiro e, de modo especial, dos paraibanos e da conhecida Terra de Maringá, é necessário lembrar a degradação dos valores seculares sertanejos desconhecida pelas gerações que nunca ouviram a sublime homenagem de Joubert de Carvalho à bela cidade do Sertão da Paraíba, berço de estimáveis valores culturais, que abriga vetustos testemunhos arquitetônicos do estilo barroco e se vangloria de poder justificar os versos do notável compositor contemporâneo quando afirma com ternura, dando voz ao humilde caboclo apaixonado: Antigamente uma alegria sem igual/ Dominava aquela gente da cidade de Pombal/ Mas veio a seca, toda a chuva foi simbora/ Só restando então as águas dos meus óios quando chora/ Maringá, depois que tu partiste/ Tudo aqui ficou tão triste que eu garrei a imaginá.


José Romero Araújo Cardoso e Gilberto de Sousa Lucena
Foto: Os retirantes de Cândido Portinari

3 comentários:

UBT Maringá disse...

Em que pesem os fatos históricos narrados no presente artigo, creio que seus autores foram deselegantes ao se referirem aos maringaenses como “usurpadores” que “indevidamente, sem nenhum direito histórico ou geográfico” se apoderaram da composição de Joubert Carvalho. Sou filha de pioneiros, ambos paraibanos e que ajudaram a construir esta cidade. Mas eles não estavam aqui sozinhos. O historiador João Laércio Lopes Leal lembra que os nordestinos eram numerosos e deram grande contribuição na formação da cidade. Vinham abrir picadas, trabalhavam nas lavouras, eram furadores de poços, operários na construção de casas, carregadores de sacos de café. Todos conheciam a realidade da seca no nordeste, tanto que vieram para cá em busca de uma vida melhor, mas não esqueceram suas raízes e sua cultura. A temática do poema pode ter sido inicialmente dirigida “apenas” à cidade de Pombal, mas a “realidade sertaneja” a quem os autores se referem é mais abrangente e com certeza atinge o fluxo de nordestinos que migraram para o estado do Paraná e se estabeleceram em Maringá, pois naquela época a migração de paraibanos (não somente os de Pombal) para outros estados brasileiros era sim uma realidade no sertão nordestino.
Considero absurda a afirmação de que “em tese, não há a menor relação da mensagem poética com a cidade paranaense de Maringá, a qual nunca foi constituída por caboclos, como o sertão da Paraíba”. Dizer isso é o mesmo que desconhecer a história da colonização de Maringá. Ora, se eles estavam aqui arando a terra, na qualidade de “retirantes” como não se identificar com os versos da canção popular? Será que os autores saberiam dizer quantas caboclas bonitas e nordestinas (que aqui estavam) se identificaram com a história da cabocla Maringá, narrada nos versos de Joubert de Carvalho? Saberiam eles dizer quantas Marias deixaram em seu estado de origem um amor antigo, cujo coração jamais se esqueceria? Afirmar que a população de Maringá nunca foi constituída por caboclos é negar a história da nossa colonização. Meu pai era o próprio caboclo, cuja fala de homem popular nunca negou o sotaque. Autêntico paraibano daqueles que faziam repentes em praça pública. Existiu e ainda existe aqui forte influência europeia, mas a formação de Maringá não se constituiu somente de europeus. A troca de culturas ocorrida na época da colonização foi uma das nossas maiores riquezas e as famílias de europeus, principalmente as italianas que aqui estavam logo nos ensinaram seus costumes. Aprendemos a comer polenta, macarronada com frango, pão feito em casa e outras comidas que nunca havíamos visto antes. De nossa parte, ensinamos a fazer cuscuz, tapioca, galinha a cabidela, mingau e tantas outras variedades da cozinha nordestina.
Temos o privilégio de não sofrer com estiagens a ponto de expulsar os filhos da terra para outros estados. Mas temos espaço e coração generoso para acolher quem chega disposto a trabalhar e a nos ajudar a crescer, como o caso dos irmãos nordestinos e tantos migrantes outros migrantes. Esta canção ficou conhecida aqui porque os nordestinos se identificavam com a letra, pelas lembranças que trazia de sua terra natal e porque era um sucesso nacional. Não usurpamos nada nem nos apropriamos de nada. Quando algo se torna sucesso passa a ser de domínio público, tanto que a música foi cantada naturalmente pelo povo (não somente os nordestinos, mas mineiros, paulistas e demais migrantes de outros estados brasileiros) na época da colonização, a ponto de se tornar o nome da cidade. E nome é uma referência muito forte. Tão forte que ainda hoje a canção de Joubert Carvalho é referência. Talvez se não existisse uma cidade tão bela e tão pujante com esse nome, a música já tivesse caído no esquecimento. Muitos sucessos da época tiveram esse destino. Há que se questionar: Maringá é famosa por causa da música ou a música é famosa por causa de Maringá? O certo é que ambas se beneficiaram desse enfoque: Maringá tem um belo nome e uma bonita história. A música de Joubert Carvalho não poderia ter melhor cidade como referência.







MEDEIROS, Natalino Henrique disse...

Parabéns Angela Xavier pela lucidez de sua análise. Parabéns novamente!!!

Ricardo Ramalho disse...

Análise, absolutamente, perfeita. Sou pombalense e abraço carinhosamente, essa complementação histórica e cultural. Parabéns!