Sou feliz só por preguiça. A infelicidade dá uma trabalheira pior que
doença: é preciso entrar e sair dela, afastar os que nos querem
consolar, aceitar pêsames por uma porção da alma que nem chegou a
falecer. – Levanta, ó dono das preguiças. É o mando de minha vizinha, a
mulata Dona Luarmina. Eu respondo: -Preguiçoso? Eu ando é a embranquecer
as palmas das mãos. -Conversa de malandro… – Sabe uma coisa, Dona
Luarmina? O trabalho é que escureceu o pobre do preto. E, afora isso, eu
só presto é para viver… Ela ri com aquele modo apagado dela. A gorda
Luarmina sorri só para dar rosto à tristeza. – Você, Zeca Perpétuo, até
parece mulher… – Mulher, eu? – Sim, mulher é que senta em esteira. Você é
o único homem que eu vi sentar na esteira. – Que quer vizinha? Cadeira
não dá jeito para dormir. Ela se afasta, pesada como pelicano, abanando a
cabeça. Minha vizinha reclama não haver homem com miolo tão miúdo como
eu. Diz que nunca viu pescador deixar escapar tanta maré:
– Mas
você, Zeca: é que nem faz ideia da vida. – A vida, Dona Luarmina? A vida
é tão simples que ninguém a entende. É como dizia meu avô Celestiano
sobre pensarmos Deus ou não Deus…
Além disso, pensar traz muita
pedra e pouco caminho. Por isso eu, um reformado do mar o que me resta
fazer? Dispensado de pescar, me dispenso de pensar. Aprendi nos muitos
anos de pescaria: o tempo anda por ondas. A gente tem é que ficar
levezinho e sempre apanha boleia numa dessas ondeações. – Não é verdade,
Dona Luarmina? A senhora sabe essas línguas da nossa gente. Me diga,
minha Dona: qual é a palavra para dizer futuro? Sim, como se diz futuro?
Não se diz, na língua deste lugar de África. Sim, porque futuro é uma
coisa que existindo nunca chega a haver. Então eu me suficiento do
actual presente. E basta. – Só eu quero é ser um homem bom, Dona. – Você
é mas é um aldrabom.
A gorda mulata não quer amolecer conversa. E
tem razão, sendo minha vizinha desde há tanto. Ela chegou ao bairro
depois da morte de meus pais, quando herdei a velha casa da família.
Nessa altura, eu ainda pescava em longas viagens, semanas de ausência
nos bancos de Sofala. Nem notava a existência de Luarmina. Também ela,
logo que desembarcou, se internou na Missão, em estágio para freira.
Ficou enclausurada nessas penumbras onde se murmura conversa com Deus.
Só uns anos mais tarde ela saiu dessa reclusão. E se instalou na casa
que os padres lhe destinaram, bem junto à minha morada. Luarmina
costureirava, era seu sustento. Nos primeiros tempos, ela continuava sem
se dar às vistas. Só as mulheres que entravam em seus domínios é que
lhe davam conta. No resto, me chegavam apenas os perfumes de sua sombra.
Um dia o padre Nunes me falou de Luarmina, seus brumosos passados. O
pai era um grego, um desses pescadores que arrumou rede em costas de
Moçambique, do lado de 1á da baía de S. Vicente. Já se antigamentara há
muito. A mãe morreu pouco tempo depois. Dizem que de desgosto. Não
devido da viuvez, mas por causa da beleza da filha. Ao que parece,
Luarmina endoidava os homens graúdos que abutreavam em redor da casa. A
senhora maldizia a perfeição de sua filha. Diz-se que, enlouquecida,
certa noite intentou de golpear o rosto de Luarmina. Só para a esfeiar
e, assim, afastar os candidatos.
Depois
da morte da mãe, enviaram Luarmina para o lado de cá, para ela se
amoldar na Missão, entregue a reza e crucifixo. Havia que arrumar a moça
por fora, engomá-la por dentro. E foi assim que ela se dedicou a
linhas, agulhas e dedais. Até se transferir para sua actual moradia, nos
arredores de minha existência.
Só bem depois de me retirar das
pescarias é que dei por mim a encostar desejos na vizinha. Comecei por
cartas, mensagens à distância. À custa de minhas insistências
namoradeiras Luarmina já aprendera as mil defesas. Ela sempre me
desfazia os favores, negando-se. – Me deixa sossegada, Zeca. Não vê que
eu já não desengomo lençol? – Que ideia, Dona vizinha? Quem lhe disse
que eu tinha essa intenção? Todavia, ela tem razão. Minhas visitas são
para lhe caçar um descuido na existência beliscar-lhe uma ternura. Só
sonho sempre o mesmo: me embrulhar com ela, arrastado por essa grande
onda que nos faz inexistir. Ela resiste, mas eu volto sempre ao lugar
dela. – Dona Luarmina, o que é isso? Parece ficou mesmo freira. Um dia,
quando o amor lhe chegar, você nem o vai reconhecer… – Deixe-me, Zeca.
Eu sou velha, só preciso é um ombro.
Confirmando esse atestado de
inutensílio, ela esfrega os joelhos como se fossem eles os culpados do
seu cansaço. As pernas dela da maneira como incham, dificultam as vias
do sangue. Lhe icebergam os pés, a gente toca e são blocos de gelo. E
ela sempre se queixa. Um dia aproveitei para me oferecer: – Quer que lhe
aqueça os pés? Arrepiando expectativa, ela até aceitou. Até eu fiquei
assim, meio desfisgado, o coração atropelando o peito. – Me aquece,
Zeca? – Sim, aqueço mas… pela parte de dentro.
Mia Couto
Excerto do livro “Mar Me Quer“.
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