Nasci numa época em que tudo que se dizia era válido, que a cegonha chegava da maneira súbita, e minha mãe após ter criança tinha que tomar canja de galinha durante quarenta dias.
Havia na minha casa sempre um leite de sobra, pois a empregada
por sinal tinha filho no período que minha mãe tinha e então nós nos
preparávamos para choro durante longo tempo.
Nós crescíamos sob a orientação de Deus. E fazia o possível para
sobreviver, pois a morte era problema até o sétimo dia, posteriormente
havia nova gravidez, e ninguém se lembrava da barriga anterior.
No meu tempo havia apenas quatro remédios que movimentavam a bolsa de valores das farmácias: emulsão de Scott, violeta de genciana, biotônico Fontoura, e óleo de rícino. Fora destes medicamentos não tinham solução.
Nos ferimentos recentes, nada melhor que uma poeira delicada de
terra, de forma lenta e progressiva de tal maneira que tudo que sangrava
estivesse perfeitamente coberto, além de pó de café, além de lavagem
continua de água com sal.
Era uma vida onde mandava os que eram capacitados para sobrevivência, pois não existia o famoso antibiótico, capaz de resolver problemas que não encontrávamos nas orações.
Nas gripes que mexiam na Europa, mexiam na minha terra, e nas fases agudas, nas janelas estava escrito em caneta: Deus livre-nos da peste, da fome e da gripe asiática.
As crises convulsivas, que surgiam por acaso em um irmão,
teríamos que afastar de imediato, pois a baba da secreção seria
suficiente para transmitir de forma direta a doença, e em muitos dos
casos entupiam a boca do miserável com sal.
A febre era o maior de todos os terrores que existiam e não é
diferente nos dias atuais, porém tínhamos mais medo das febres do que o
que podia acontecer em decorrência deste episódio.
Para cada casa tinha sempre uma vela, pois morrer sem vela na mão era equivalente a ir para o limbo quando criança, ou descer sem parada para o inferno.
Nada melhor que nascer com boa saúde, pois os partos eram feitos
por parteira na escuridão da noite devida a falta de energia que esse
perdia por volta das 21 horas.
Crescíamos como gente sem noção do tempo, assistíamos aos filmes
até as 18 horas para menores de 14 anos, e depois nossos pais iam ao
filme liberado para maiores de 18 anos.
Vestíamos a roupa que sobravam dos irmãos mais velhos, éramos
secundários as coisas do tempo, e tudo que nos vinham, tinha por
obrigação passar pela cultura dos que eram ascendentes.
Hoje tudo é diferente, o respeito aos pais se perdeu na voz grossa destes jovens, a fé se diluiu nas esquinas da safadeza, o amor foi sepultado junto com espírito, já não existe a bênção da noite, e os mais machos quando presos, choram pela presença dos pais buscando o carinho que em momento algum foram capazes de demonstrar.
Rafael Holanda
Médico Neurocirurgião
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