Há oito anos que se arrastava uma
disputa legal que chegou a parecer estar resolvida em 2012 e que tem uma
história descrita como… “kafkiana”. A Biblioteca Nacional de Israel vai
mesmo receber o espólio de documentos do escritor.
Do Publico.pt
A decisão final foi do Supremo Tribunal
de Israel: depois de oito anos de disputa, confirmou-se que os
manuscritos que Franz Kafka deixou ao seu amigo Max Brod e que foram
herdados pela sua secretária vão mesmo ficar na Biblioteca Nacional de
Israel. “Um dia de celebração para qualquer pessoa da cultura, em Israel
e fora”, disse David Blumberg, o presidente da instituição que fica com
a guarda de um espólio ainda praticamente desconhecido, prometendo
mostrá-lo ao público de forma exaustiva.
Poucos viram até agora o conteúdo dos
cofres onde as herdeiras de Esther Hoffe, a secretária a quem Brod legou
o espólio, mantiveram os disputados documentos, e que incluem cadernos e
cartas – podem também conter o manuscrito original de um romance incompleto,
segundo referia um artigo da BBC datado de 2010. Inequivocamente está
confirmada a existência, entre os papéis de correspondência trocada
entre os dois amigos, dos diários de Kafka em Paris, de muitas obras de
Brod, também ele escritor, e de desenhos e cartas de Kafka, informa a
biblioteca em comunicado.
“É previsível que muitos outros tesouros
estejam escondidos no material pessoal de Max Brod, que será exposto e
catalogado pela Biblioteca Nacional”, lê-se no mesmo comunicado.
A sua importância, e o respectivo valor,
estimado em milhões, justificam que há oito anos as herdeiras de Hoffe e
o Estado de Israel estejam envoltos numa batalha legal – agora, o
Supremo Tribunal tomou a decisão de última instância de ordenar que a
família israelita transfira os documentos para a Biblioteca Nacional. O
processo legal tem sido descrito por muitos como “kafkiano”.
A família Hoffe defendia que era a
legítima proprietária dos documentos e em 2012 argumentara também que a
Biblioteca Nacional não tinha meios para garantir a preservação do
espólio. Mas “o Supremo Tribunal pediu à Biblioteca Nacional que faça o
máximo para revelar o espólio Brod ao público” e esta “vai seguir a
decisão do tribunal e preservar os bens culturais, mantendo-os no país e
tornando-os acessíveis ao grande público”, garantiu David Blumberg,
citado pela BBC.
Da fuga aos nazis à Terra Prometida
Remonte-se ao início do século XX.
Kafka, nascido em Praga, morreu de tuberculose em 1924, com 41 anos. O
seu amigo Brod, fiel depositário da sua obra inédita e de documentos
vários, morreu em 1968 sem ter cumprido parte da promessa que tinha
feito ao escritor – queimar todos os romances que deixara por publicar.
“O meu último pedido: que tudo o que deixo, sob a forma de diários,
manuscritos, cartas (as minhas e de outros), desenhos e afins, seja
queimado sem ser lido”, escreveu Franz Kafka numa carta endereçada a Max
Brod e deixada na secretária da sua casa na cidade checa.
Mas Max Brod publicou O Processo, O Castelo e Amerika, títulos
hoje essenciais na obra do escritor e que foram editados postumamente,
entre 1925 e 1927, com um ano de separação entre si. Brod, que
considerou que queimá-los seria “um ato criminoso”, como cita o Jerusalem Post,
salvou parte da obra inédita de Kafka de outra forma: em 1939, levou os
seus manuscritos de Praga, fugindo aos nazis que acabavam de invadir a
antiga Checoslováquia e emigrando para a Palestina. O trem em que saiu
de Praga com a mala cheia do legado de Kafka passou cinco minutos antes
de os soldados alemães fecharem a fronteira.
Antes de morrer, Max Brod confiou os
papéis à sua secretária, Esther Hoffe – também descrita por algumas
fontes como sua companheira de longa data. Ela guardou-os durante toda a
vida num apartamento em Telavive e em cofres em diferentes bancos, não
sem que na década de 1970, e de acordo com o Jerusalem Post, Israel
tenha tentado ficar com a custódia do espólio para o expor – um
tribunal deu-lhe o direito de o manter na sua posse, notando porém que
devia doá-lo ao Estado após a sua morte.
Uma longa disputa legal
As duas filhas que Esther Hoffe teve com
o marido Otto, Eva Hoffe e Ruth Wiesler, herdaram o espólio após a
morte da antiga secretária, em 2007. No ano seguinte, encetaram um
processo para serem legalmente reconhecidas como suas proprietárias,
mas, em 2009, o Estado israelita processou-as, exigindo os documentos – o
testamento de Brod indicava que Esther Hoffe deveria depois legar o seu
espólio “à Universidade Hebraica, à Biblioteca Municipal de Telavive ou
a qualquer outra instituição pública em Israel ou no estrangeiro”,
lembrava a acusação.
Foi então que começou verdadeiramente a
disputa legal. Em 2010, escreve a BBC, alguns dos cofres que continham o
espólio foram abertos em Zurique (os documentos tinham sido armazenados
em cofres na Suíça e em Israel), mas o seu conteúdo só ficou a ser
conhecido por um juiz israelita. Um tribunal israelita entregaria o espólio à Biblioteca Nacional do país em 2012.
Entretanto, um recurso prolongou o caso, com a herdeira Eva, a última
sobrevivente das duas irmãs, a argumentar também que o espólio era a sua
única fonte de rendimento – Esther Hoffe já tinha vendido o manuscrito
de O Processo por dois milhões de dólares em 1988, num leilão
que bateu recordes e em que ficara prometido que o seu novo dono, um
livreiro alemão, o doaria a um museu para exposição pública.
À época a venda deixou a sobrinha de
Kafka, Marianna Steiner, então com 75 anos, muito satisfeita pelo facto
de a obra não “ficar fechada numa gaveta”, reportava o diário New York Times.
Ao longo dos anos, escreve a agência
AFP, as irmãs Hoffe venderam alguns outros documentos do espólio a
colecionadores. Eva Hoffe, que ao contrário da irmã nunca abandonou o
apartamento dos pais e viveu com os documentos que lá se encontravam, recordava em 2010 o New York Times,
tinha uma relação “quase biológica” com os manuscritos, segundo o seu
advogado, Oded Hacohen. Do destino dado ao espólio, por estar em análise
todo o testamento de Esther Hoffe, estaria também dependente a herança
de perto de um milhão de dólares respeitante à compensação dada à
família pelo Governo alemão por danos relacionados com o Holocausto. Os
Hoffe fugiram de Praga já durante a ocupação nazi.
Só esta semana o caso se resolveu
definitivamente. Os três juízes do Supremo israelita a escreveram
segunda-feira no seu veredicto que “Max Brod não queria que os seus bens
fossem vendidos ao melhor preço, mas sim que encontrassem um lugar
apropriado num santuário literário e cultural”.
Do Blog do Milton Ribeiro
Do Blog do Milton Ribeiro
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