O escritor Tim Powers contava que começou a ler um livro e
a certa altura dois personagens entram no carro e pegam a estrada para outra
cidade. Vão conversando e de repente o narrador diz: “Pedi licença a Fulano e
fui na cozinha pegar duas cervejas.” E o leitor dá um pulo e diz: Peraí, os
caras não estavam num carro?!
Erro de continuidade não existe só no cinema. Existe um
certo surrealismo nesses cortes bruscos motivados por inexperiência, carraspanas,
doença na família, ou mero esquecimento mesmo. Um autor de pulp fiction, por exemplo, tinha que fazer “x” páginas por dia e
geralmente fazia sem ter tempo (ou saco) para reler o que tinha feito na
véspera. Pegava de onde tinha deixado.
A falta de cerimônia deles para com a arte literária
beirava a de Nelson Rodrigues, que, reza a lenda, aproveitava os remansos do
tempo na redação do jornal onde garimpava o leite das crianças, e ficava na
máquina batucando os folhetins com que garantia o café dos adultos, e que
assinava como “Suzana Flag”(Meu Destino É
Pecar, Escravas do Amor, etc).
Eram novelões intrincados, ora com alguma rudeza
naturalista, ora melodrama puro, tango argentino puro. Cada romance era como três
ou quatro peças rodriguianas interagindo umas com as outras.
Daí que em certos momentos Nelson enchia o saco, vestia o
paletó e descia para almoçar ou para tomar uma. Os colegas corriam para a máquina,
liam, sentavam ali e continuavam a história por mais duas ou três páginas até
alguém anunciar o retorno dele, e aí todos voltavam a suas mesas. Nelson tirava
o paletó, pendurava o paletó no encosto, puxava a cadeira, sentava, erguia o
prendedor de metal de sobre a folha de papel e relia as últimas cinco linhas.
Repunha o prendedor, e daí seguia em frente.
Isso é uma típica brincadeira de redação ou de
escritório, ambientes propensos a esse tipo de gracejo. Imagino por minha conta
que esse detalhe, mesmo que fosse revelado a Nelson, não mudaria nada. Ele
daria de ombros, enfastiado. Que importava se havia um texto intruso incrustado
no DNA de sua criatura? Autoria? Que importava a autoria? Fossem perguntar a Suzana Flag.
Eu diria que em outro contexto isso seria uma brincadeira
surrealista de meta-parceria em cabra-cega. Aquela brincadeira de escrever uma
frase e dobrar o papel deixando um pedacinho para ser lido e continuado pelo próximo,
que faz o mesmo e passa adiante. São os tais “cadáveres delicados” que André
Breton, Luis Buñuel, Paul Éluard e os demais surrealistas praticavam, com textos
e desenhos coletivos feitos às cegas.
Nelson Rodrigues, mesmo sob o próprio nome, e no que tem
de melhor, sempre foi um imperfeccionista, produzindo sem parar, confiando mais
no impacto da verdade central de tudo aquilo do que em qualquer filigrana
estilística.
Era escritor de redação de jornal, com formação de
almanaque, de palavras cruzadas, de coluna de variedades, curiosidades, faits-divers (como também o foram
Georges Perec, Raymond Queneau, Mario Quintana). O redator navalha, que com uma
só frase degola uma dúvida e encerra uma questão.
Essa era a escola de Nelson, um fazedor de frases impecável.
Teatro + jornal = literatura. A tirada brilhante das grandes cenas do
melodrama, e a concisão desconcertante do criador de manchetes.
Talvez alguma coisa de sua obra envelheça, mas não acho
que serão os diálogos. Talvez os enredos. Não era um grande concatenador de
manobras complicadas. Suas intrigas eram intrigas suburbanas; mesmo no romance
eram teatrais; mesmo no teatro tinham algo de radiofônico. Pessoas falando,
falando, jogando tudo pra fora.
E as tramas dele eram entendíveis por quem é capaz de
entender uma página policial, uma novela hispânica, um folhetim francês. Mas
seu negócio não era a “trama”. Eram as situações bizarras, patéticas, brutais, constrangedoras
em que ele jogava seus personagens como quem joga gente aos leões. Seus enredos
não parecem um silogismo ou uma equação, e sim uma girândola de fogos de
artifício.
Lembro às vezes a história, acho que contada por Frank
Gruber, de um escritor de pulp fiction
que deu uma festa para uma multidão de amigos em seu apartamento em Manhattan,
anos 1940. Enquanto os convidados bebiam e dançavam, o dono da casa, num
recanto, datilografava a toda velocidade as últimas vinte páginas de um conto
que precisava pôr no Correio no dia seguinte. À meia-noite ele deu o conto por terminado
e foi beber e dançar com os outros.
Nessas lendas urbanas literárias, a profissão de escritor
parece mais romântica do que é, mas o crítico e o leitor: pensam: como ficaria
uma história escrita assim? Para alguns, não faz diferença. Tem gente que escreve
num café de calçada, num beliche de caserna, num trem lotado. Tem escritor que nem
se altera, pode estar num clube, num grito de carnaval, escrevendo num caderno
sob a chuva de confetes, e o texto sai com som de mosteiro.
Penso assim: pessoas como esses escritores pulp reliam o que tinham feito? Pegavam
da última frase, como Nelson Rodrigues? Mantinham controle de continuidade em
algum bloco-de-notas com nomes, datas, direções mencionadas no texto? Ou era
tudo de oitiva? Isaac Asimov
orgulhava-se de só pegar num conto para revisar quando ele era recusado por
todas as revistas disponíveis no momento. Eu acho isso uma heresia pior do que
não ir ao médico.
O texto que Asimov mandava era seu primeiro rascunho, que
já era praticamente o texto final. O Doutor não gostava de reescrever, tinha
(ao que se diz) uma memória espantosamente retentiva, e defendia sua teoria
estilística da “prosa da vidraça” (transparente, mostrando tudo, sem chamar a
atenção para si) contra a “prosa do
vitral”, a prosa ornada, que não importa do que fale, está mostrando antes de
tudo a si própria.
Se você não é Asimov, como é o meu caso, o jeito é
revisar. Você “perdiganha” um tempo imenso relendo pela décima vez um trecho
que já foi reescrito nove, mas por isso mesmo, prestenção.
Será que Nelson percebeu e cortou as intervenções dos
seus companheiros de jornal? E como seriam? Será que eles esculhambavam muito,
ou procuravam repetir os nomes dos personagens, continuar, mesmo avacalhando, o
que estava escrito ali? Cem anos depois, algum professor de literatura vai envelhecer
tentando em vão entender que cortes bruscos de enredo e de tom eram aqueles que
de vez em quando sobressaltavam o livro.
De qualquer modo, brincadeira surrealista ou não, é uma
interferência na obra feita à revelia do autor da obra. Comparo com aquela
tradução de Os Lusíadas para o inglês
onde o tradutor britânico cortou várias estrofes consideradas impróprias, mas
em compensação inseriu trezentos versos com a descrição de uma batalha marítima
que não existe no original. (Aqui:
Bráulio Tavares
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