terça-feira, 20 de setembro de 2016

José Laurentino

 (foto de Leonardo Silva)

Algum tempo atrás, remexendo aqui numas gavetas, achei um papel dobrado. Era um daqueles papéis onde a gente anota alguma coisa e guarda no bolso de trás, e durante semanas ou meses o papel sai pulando de calça em calça até o sujeito estranhar e ter que olhar o que é aquilo.
Era um papel rabiscado com caneta Bic, uns riscos, uns cálculos, e estas linhas, com a minha letra:
Amigo Zé Laurentino
estive em nossa cidade,
quando ouvi tocar o sino
da igreja da saudade.
Era uma carta que eu comecei a escrever depois de uma das minhas passadas por Campina Grande. Isso aí era o tipo do verso que Zezinho ouvia e dava um riso meio de banda e dizia, vige, que coisa bonita. Poesia de cantadores tem muito dessas imagens meio singelas, que uns acham naïf. Versos que podiam ser de ciranda ou de coco, porque são versos para serem cantados. E é por isso que o poeta faz retinir o sino, porque a melodia pesa pelo menos tanto quanto a retórica.
O projeto de carta ficou por aí mesmo, mas reencontrei Zezinho meses atrás na cerimônia de entrega dos títulos de cidadãos paraibanos a Ivanildo Vila Nova, Santanna o Cantador e Os 3 do Nordeste.  Zezinho tinha perdido a vista por um tempo, mas depois descobriu-se que era algo que podia ser operado, e depois de algum tempo fora do ar ele recuperou a visão em grande parte, o que deve ter sido uma grande alegria.
Tenho lembrado muito da época dos festivais de cantadores em Campina, em função de textos que estou escrevendo ou revisando.
Zé Laurentino pertencia à Associação dos Poetas e Repentistas Nordestinos, atuante em Campina, nessa época tendo à frente José Gonçalves e Ivanildo. E mais Santino Luiz, João Marinho, e outros, mas todos violeiros, e somente Zezinho era o que se chama de poeta matuto.
Os seus grandes sucessos naquela época eram “Matuto no Futebol”, "Esmola Pra São José", "O Mal se Paga com o Bem", “Eu, a Cama e Nobelina”. O linguajar da poesia matuta engana quem pensa que o poeta fala daquele jeito. É uma fala estilizada, uma fala-máscara, que o poeta usa para dar colorido ao seu “número” no palco. Quem escreve versos daquele jeito dificilmente fala daquele jeito.
Não gosto da poesia matuta quando ela envereda por aquela estética de festa junina, onde é obrigatório mostrar um matuto de chapéu esfiapado, sem os dentes da frente, e que anda como um macaco. Não gosto quando ridicularizam o matuto. Gosto quando o matuto (como os humoristas judeus) manga de si mesmo, e, mangando de si mesmo, demonstra ter uma compreensão de si mesmo e do Outro mais profunda que a compreensão do Outro.
Patativa do Assaré tinha um português melhor do que o meu. A voz matuta era opção dramatúrgica para deixar claro o avatar que estava incorporando.
José Laurentino era um poeta de ironia discreta, olho bom para detalhes, riqueza de rimas que pareciam cair do céu para fechar uma estrofe com perfeição. Seus versos que provocavam maiores gargalhadas eram quando ele descreva o beradêro que se mete a jogar de "quipa" e vai defender um pênalti:
Me dero um calção listrado
e um pá de jueieira
também um pá de chuteira,
uma camisa de gola
e eu gritei arra diabo
eu já peguei touro brabo
e segurei pelo rabo
porque não pego uma bola?

E quando eu fui pegá a bola
me atrapaei meu patrão
passou pru entre meus braço
bateu numa região
que foi batendo eu caindo
espulinhando no chão. 
Esse tipo de humor, pra mim, tem alguma coisa de comédia do cinema mudo, alguma coisa de cordel, de comédia de picadeiro de circo.
E a grande graça, pra mim, está nesse verbo “espolinhar”, que é muito típico do interior do Nordeste. Uma palavra rara mas familiar, com uma sugestão visual (“espolinhar”, para mim, é cair no chão e ficar agitando as pernas, dando chutes no ar.)  
Augusto dos Anjos usa a palavra, em “A Meretriz”:
Nesse espolinhamento repugnante
o esqueleto irritado da bacante
estrala... Lembra o ruído harto azorrague
a vergastar ásperos dorsos grossos.
A palavra rara que todo mundo conhece. O mesmo que vemos tantas vezes no teatro de Lurdes Ramalho, de Ariano Suassuna, onde a todo instante brilha um diamante-bruto vocabular incrustado na pedra do idioma comum.
No poema de “Nobelina”, o narrador faz um elogio à sinfonia musical produzida por uma cama com o colchão em movimento, e depois fala de seu noivado com Nobelina. Um dia ele a flagra recebendo a arrastada-de-asa de um carioca, numa festa, e profere a sentença memorável:
Dei uma cordinha a ela
porque mulher é assim:
quando tá com a corda toda
mostra se é boa ou ruim.
Após a notícia do falecimento de José Laurentino, nesta quinta-feira, vi nas redes sociais a citação de um verso feito por ele quando do falecimento de Manoel Monteiro, o cordelista muito atuante em Campina, poucos anos atrás. Zezinho teria dito:
Manoel, por ti eu sinto 
uma saudade sem fim.
Se aí no céu encontrares 
um barzinho, um botequim, 
peça a Deus para que guarde 
um lugarzinho pra mim.
 
 
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo 

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