Talvez seja muita pretensão achar que Deus vai dar atenção às nossas eleições municipais, ainda mais sabendo que elas transformaram a fé em moeda de troca de votos
Eu não queria estar no lugar de Jesus nestas eleições para a prefeitura
do Rio. Já muito assediado, não se sabe ainda que partido Ele vai
tomar, se é que vai tomar algum. Em tese, ninguém admite misturar
religião e política, pois, como se diz, vivemos num Estado laico. Mas,
na prática, é evidente a mistura. E hoje há uma corrida aos votos de
fieis de outras crenças, em acirrada disputa pela fé alheia.
Por via das dúvidas, deve ter candidato rezando e orando para agradar
aos dois lados. O do PMDB, por exemplo, Pedro Paulo, fez vídeo em que
aparece segurando a Bíblia no templo da Assembleia de Deus, Ministério
de Madureira, como se fosse crente desde criancinha. Mas o campeão desse
novo sincretismo religioso para efeito eleitoral é Marcelo Crivella, do
PRB, que está atacando em dois planos.
Bispo licenciado, ele vem tentando se descolar da Igreja Universal do
Reino de Deus, do seu tio Edir Macedo, para diminuir a rejeição. E, ao
mesmo tempo, tenta colar sua imagem à tolerância, ao aparecer na
televisão acompanhado de um pai de santo. Trata-se de uma ousada
estratégia de marketing, que prevê lances eticamente reprováveis, como o
uso não autorizado da foto do encontro com o cardeal arcebispo do Rio,
dom Orani Tempesta, a quem foi apresentar seu plano de governo, como
fizeram os outros candidatos.
Só que, ao contrário destes, Crivella produziu peças com a imagem
risonha dos dois e panfletou em portas de igreja e de metrô. A
Arquidiocese protestou com indignação contra a indevida propaganda e
aproveitou para avisar: “O cardeal não apoia nenhum candidato à
prefeitura ou à Câmara Municipal”. Por meio de sua campanha, o senador
começou negando que tivesse distribuído o material, mas depois confessou
a má ação, embora alegando que o “único objetivo foi dar transparência à
população dos programas assumidos junto ao cardeal”.
Quer dizer, tergiversou, confessou, mas não se penitenciou do erro,
isto é, do que a igreja de dom Orani classificaria de pecado sem
remissão, porque sem reconhecimento da falta e sem arrependimento.
Durante sua última campanha, a ex-presidente Dilma Rousseff deu um
conselho: “Nós podemos fazer o diabo quando é hora de eleição”.
Não se sabe se ela incluía aí usar o santo nome em vão. Talvez seja
muita pretensão achar que Deus, com tantos problemas graves para
resolver no mundo, vai dar atenção às nossas eleições municipais, ainda
mais sabendo que elas transformaram a fé em moeda de troca de votos.
Zuenir Ventura, O Globo
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