“Acordar como um inseto não é muito diferente do que acordar como Napoleão ou George Washington”, diz Nabokov
Na famosa história do Kafka, um dia Gregor Samsa acorda de um sono
inquietante e se vê transformado num monstruoso... o que, exatamente?
Convencionou-se que o desafortunado Gregor acordou transformado numa
barata. Vladimir Nabokov concluiu que o inseto era um grande besouro, e
estranhou que Kafka ignorasse que os besouros têm asas. Se o inseto do
Kafka pudesse sair voando, a história teria outro sentido. Ou mais um
sentido, além de todas as outras interpretações dadas à obscura
alegoria.
Nabokov dedica sua conjetura sobre as asas (está na coleção de
palestras sobre literatura que fez antes de ficar famoso com a
publicação de “Lolita”) a todas as pessoas que têm asas mas não sabem.
Entre as muitas interpretações de “A metamorfose” que Nabokov rejeita
com mais desdém é a freudiana, segundo a qual a origem da história é a
relação difícil do Kafka com seu pai, e seu sentimento de culpa. Freud
era uma das principais antipatias de Nabokov. E elas não eram poucas.
Nabokov não propõe nenhuma interpretação, pelo menos nenhuma com uma
inegável marca pessoal. Nota certas reincidências no texto — como o
número três (as três portas do quarto de Gregor, os três membros da
família mais três empregados, os três hospedes com três barbas) —, mas
recomenda que não se dê muita importância à coincidência, que é mais
técnica do que simbólica.
A fantasia de Kafka tinha sua lógica, e o que pode ser mais lógico do
que o velho trio, tese, antítese e síntese? Acima de tudo, se deveria
evitar qualquer mito proposto por seguidores do “feiticeiro de Viena”,
que era como ele chamava Freud.
Para Nabokov, interpretações além da realidade do texto eram
desnecessárias. Afinal, nós todos já tivemos a sensação de acordar
estranhamente, como Gregor Samsa. “Acordar como um inseto não é muito
diferente do que acordar como Napoleão ou George Washington”, diz
Nabokov. E conta: “Conheci um homem que acordou como o imperador do
Brasil”.
Especulação fascinante: e se Nabokov tivesse aproveitado a história do
homem que acordou como imperador do Brasil e seguisse seus passos depois
da metamorfose? Pode-se imaginar ele chegando aqui para reclamar o
trono, num país decididamente kafkiano.
Só
Da série “Só no Brasil”. O Japonês da Federal, também conhecido como o
Japonês Bonzinho, está desempenhando normalmente suas funções, inclusive
a escolta de presos na Lava-Jato, com uma tornozeleira. Ele também está
indiciado, e em prisão domiciliar, de onde só sai para prender os
outros. Kafkiano, decididamente kafkiano.
Luis Fernando Veríssimo
Nenhum comentário:
Postar um comentário