Não é muito comum um gênero artístico ser criado por uma
só pessoa, num curto espaço de tempo.
Podemos dizer que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira
criaram o baião nos anos 1940 no Rio de Janeiro, e que Edgar Allan Poe inventou
o romance detetivesco moderno em 1841 quando publicou “The Murders of the Rue
Morgue”.
Borges lembra, numa conferência famosa, que a literatura
policial produziu não somente um novo tipo de história (voltada para a
elucidação de um crime inexplicável) . Produziu um novo tipo de leitor. Um
leitor que, sabendo que vai haver uma solução, quer chegar a ela antes do
detetive. Um leitor mais desconfiado, mais atento, mais pronto para duvidar do
autor.
Num grande llivro policial sendo lido por um grande
leitor não passa uma corrente de ar que não deixe alguma dúvida e desconfiança
quanto à razão de sua passagem justamente ali, naquele local, entre aquelas
pessoas... Tudo é suspeito, tudo é duvidoso. Antes do romance policial, é
possível que de fato ninguém lesse um romance com esse tipo de prevenção, com
essa atenção extra ao jogo, à competição implícita.
Pierre Bayard é um psicanalista e escritor francês. Com
algumas obras poucas, mas firmemente argumentadas, ele está criando um novo gênero:
o romance crítico de detetive (“detective criticism”).
É um livro em formato de ensaio onde o autor, insatisfeito
com o culpado apontado pelo detetive numa obra clássica, reinterpreta a
história, recontando as peripécias, mostrando sua própria versão e apontando um
novo culpado.
Bayard fez isso nas suas desconstruções metalinguísticas
de duas obras célebres (e dois dos meus clássicos preferidos): O Assassinato de Roger Ackroyd (1926) de
Agatha Christie e O Cão dos Baskervilles (1902)
de Conan Doyle. Bayard também tem pelo menos um livro publicado no Brasil: Como falar dos livros que não lemos? (Objetiva,
2008), mas não posso falar sobre este porque não o li.
Na primeira das suas reescrituras (Qui a tué Roger Ackroyd?, 1998) Bayard faz um detalhado resumo do
romance de Agatha Christie e reexamina ponto por ponto os fatos que conduziram
ao crime, as suspeitas infundadas, os detalhes que não batiam. Ele mostra a
solução apresentada por Hercule Poirot, mas mostra que a solução não se
sustenta.
O passo seguinte para Bayard é pegar todos os elementos
criados e arranjados por Agatha Christie e inventar baseado neles uma versão
ainda melhor que a de Agatha Christie.
E ele o faz. Sua
teoria é tão verossímil quanto a de Lady Agatha, e o assassino que ele aponta é
de repente uma hipótese ainda mais interessante. (Falei sobre o livro aqui: http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2010/04/1917-quem-matou-roger-ackroyd-152009.html).
A segunda reescritura de Bayard intitulou-se L’Affaire du Chien des Baskervilles (2008)
e neste caso li a tradução norte-americana de Charlotte Mandell, Sherlock Holmes was Wrong (New York,
Bloomsbury, 2008).
Aqui, Bayard refaz a história do cão fantasma que cruzava
a charneca e assombrava uma família de ricos proprietários. E ele desmonta, tijolo por tijolo, todas as
explicações que um Holmes meio lacônico fornece a Watson no final do livro.
Nada do que imaginamos ter visto aconteceu de fato. Quer dizer--- sim, os fatos
são aqueles. Mas eles podem ser interpretados de outro modo.
Não sei se é um novo gênero literário ou um novo gênero
de crítica literária, mas eu gosto.
Diz Bayard, no segundo livro:
“A crítica detetivesca (“detective
criticism”) extrai todas as consequências do fato de que muitos elementos que
nos foram apresentados no texto como verdades estabelecidas são na verdade,
quando observados com atenção, apenas relatos de testemunhas oculares.”
É possível manter os fatos básicos os mesmos, mas
aproveitar os espaços em branco e criar outra narrativa que os justifique. Os
mesmíssimos fatos podem ser satisfatoriamente cobertos pelas mais variadas
explicações, como Chesterton exemplificou em “A honra de Israel Gow” (1911), um
dos melhores contos da série do Padre Brown (que incluí no meu Contos Fantásticos no Labirinto de Borges,
2005).
Essa luta pela hegemonia de uma explicação está na medula
mesma da literatura de detetive. Há um crime. Às vezes o assassino quer impor uma
leitura: aquilo foi acidente, morte natural, suicídio. O detetive impõe outra
leitura que não só explica como o crime foi praticado, mas também quem o praticou.
Às vezes, antes dessa solução definitiva. a polícia ou a imprensa fornecem
outras hipóteses que o detetive precisa questionar, pois sabe que não batem com
suas próprias observações.
Borges, que no auge da sua escrita meditava constantemente
sobre o gênero policial, imagina em “Exame da Obra de Herbert Quain” (1941) o autor
de um livro policial que dá pistas enigmáticas sobre um crime e no fim diz a
solução, mas, antes de se encerrar o livro, ele faz um comentário ambíguo que
leva o leitor a reconsiderar, reler, reintepretar episódios do livro que até
então ele via pela ótica do detetive. E só então entender o que de fato
acontecera. Diz Borges: “O leitor desse livro singular é mais perspicaz que o
detetive”.
O leitor-detetive Pierre Bayard mostra ser mais esperto
que Hercule Poirot e Sherlock Holmes.
Sei que os respectivos fãs tentarão lavar a honra dos
seus ídolos, mas acreditem, sou fã também. Quanto a Bayard, o simples fato de
ter tido e executado a idéia merece uma medalha. Não cabe comparar seu projeto com o de Lady
Agatha e Sir Arthur. Estavam tentando criar tipos de obra completamente
diferentes. É outra a relação com o leitor.
Bayard tem precursores ilustres nessa tentativa. Embora
não chegue a propor uma nova teoria, como faz o francês, Robert L. Styx também
reduz um argumento de Conan Doyle a pó (e logo num dos seus contos mais
famosos) em seu conto-ensaio “Os 7 erros na Liga dos Cabeça Vermelha”, que reproduzi
e comentei aqui, no meu blog sobre Raymond Chandler: http://caminhandocomphilipmarlowe.blogspot.com.br/2014/10/0009-memoria-do-leitor-2.html
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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