Cangaceiro remanescente do bando de Sinhô Pereira, Antônio Augusto Feitosa ganhou o apelido de “Meia Noite” em razão que após as tarefas diárias nos engenhos de rapadura do “Major” Floro Florentino Diniz, em Princesa, Estado da Paraíba, ganhava a caatinga altas horas da madrugada, assaltando propriedades rurais localizadas nas quebradas do sertão.
Na composição do grupo bandoleiro que passou a ser liderado por Virgulino Ferreira da Silva depois do ano de 1922, quando o vingador do Pajeú saiu em direção ao Estado do Goiás para se encontrar com o primo Luiz Padre, encontramos “Meia Noite” entre destacados cangaceiros que acompanharam o novo chefe.
“Meia Noite” compôs o grupo de dezessete cangaceiros enviados por Lampião do valhacouto nos Patos de Irerê, localizado a dezoito quilômetros de Princesa, a fim de realizar vingança pretendida por humilde bodegueiro de nome Chico Lopes, da localidade de Nazarezinho, então distrito de Sousa, Estado da Paraíba.
Humilhações perpetradas por poderoso oligarca de nome Octávio Mariz contra o até então inofensivo sertanejo motivou ousado ataque bandoleiro à cidade de Sousa, em 27 de julho de 1924.
Quando o grupo bandoleiro chegou ao sítio Jacu, em Nazarezinho, reduto da família Pereira, foi engrossado por mais gente perfazendo total de oitenta e quatro homens, entre os quais se encontrava pessoa da região, conhecida por “Paizinho”, cujas queixas contra o juiz de Sousa, Dr. Archimedes Soutto Maior, eram por demais repisadas.
“Paizinho” acusava o juiz de tê-lo em certa ocasião o condenado injustamente. Foi à casa do magistrado que grupo de cangaceiros, liderado por “Paizinho”, em um total de dezessete bandidos, alvo principal da vingança pretendida pelo atrevimento da horda bandoleira. “Meia Noite” estava entre os invasores, sendo o mais afoito, pois o juiz foi retirado de casa ainda em roupa de dormir, humilhado, espancado e, comentam, coisas piores aconteceram. O bandido do grupo de Lampião cavalgou o homem da lei, enfiou-lhe as esporas e obrigou-o a ensaiar galopes pelas ruas de Sousa.
O destacamento comandado pelo então Tenente Antônio Salgado nada pôde fazer, resumindo-se a assistir passivamente aos atos de vandalismo patrocinados pelos cangaceiros. Saques, depredações, humilhações e muita bagunça foram feitos naquele fatídico dia 27 de julho de 1924 na cidade de Sousa.
O juiz foi salvo pela intervenção oportuna de Francisco Pereira Dantas, que se tornaria o famoso cangaceiro Chico Pereira, pois os homens comandados por “Paizinho” intuíam assassinar o magistrado como ato final da vingança acalentada pelo desacatado sertanejo.
Lampião dispunha de eficaz rede de informações e logo as notícias do ocorrido em Sousa chegaram ao Saco dos Caçulas, propriedade de Marcolino Pereira Diniz nos Patos de Irerê. Enlouquecido com o que havia sido feito em Sousa, Lampião rodopiava pelo calcanhar ferido pelos disparos da tropa volante do Major Teófanes Ferraz Torres, na certeza de que a ousadia e a ferocidade contra o juiz de Sousa seria motivo de perseguição sem trégua das forças militares paraibanas, até então acomodadas por ordens superiores.
Dr. Archimedes Soutto Maior declarou guerra particular aos cangaceiros, elegendo os invasores de sua residência, responsáveis pela humilhação passada, como alvos prioritários de suas investidas. “Paizinho” caiu varado de balas em São João do Rio do Peixe, enquanto os demais eram literalmente caçados por ordens do juiz.
De regresso à região de Princesa, o grupo bandoleiro foi demovido por Marcolino Pereira Diniz a continuar sob sua proteção. Era o que Lampião pressentia quando soube da forma como tinha sido realizada a investida contra o magistrado lotado em Sousa.
“Meia Noite” regressou com o grupo, mas foi expulso quando reclamou a Lampião que Antônio Ferreira o havia “roubado”. O chefe cangaceiro exigiu do bandido a entrega de armas e munição, ao que o cangaceiro retrucou dizendo que se no bando houvesse homem fosse tomar. Ninguém se atreveu, pois bem conheciam a fama de valente que acompanhava imemorialmente “Meia Noite”.
Raptando moça da localidade conhecida apenas por Maria, o cangaceiro estava de saída para destino ignorado quando foi interceptado descansando em uma casa de farinha no sítio Tataíra, fronteira com a cidade pernambucana de Triunfo. Dezoito “cachimbos”, civis contratados para dar caça a cangaceiros, foram inicialmente ludibriados por “Meia Noite”, pois ao disfarçar a voz buscava tempo para se equipar a fim de enfrentar prova inaudita de fogo que o imortalizaria nas crônicas do cangaço, tornando-o respeitado entre seus antigos companheiros.
A tropa de “cachimbos” foi surpreendida por tiroteio intenso vindo de dentro da casa de farinha, o qual despertou a atenção da força volante comandada pelo então Tenente Manuel Benício, famoso por guardar rosário de orelhas de cangaceiros mortos em combates.
A força militar foi ao encontro dos civis em armas, perfazendo total de oitenta e dois homens. “Meia Noite” lutou a madrugada inteira contra absoluto desigual número beligerante.
O fogo da casa de farinha do sítio Tataíra era ouvido nas imediações, pois como fera acuada “Meia Noite” lutava sem desanimar, carregando, recarregando e disparando contra os oponentes, sem titubear ou sem esmorecer.
A coitada sertaneja raptada pelo intrépido cangaceiro assistiu tudo, cada momento de terror passado na madrugada de fogo quando o valente cangaceiro resolveu enfrentar quem estivesse pela frente, na base das armas, como na velha tradição do sertão sangrento e violento.
Vendo que não conseguiria romper a barreira formada pelos civis e militares que o cercaram na casa de farinha do sítio Tataíra, “Meia Noite” usou estratégia do cangaço para novamente ludibriar os adversários, jogando tamborete por uma janela, fingindo pular a mesma, mas saindo por outra. Por azar, “Meia Noite” pulou em cima de moita de quipá, ferindo seriamente o pé direito. Mesmo assim, debaixo de verdadeira saraivada de balas, após ferir quinze oponentes, o cangaceiro ainda conseguiu furar o cerco e chegar ao Saco dos Caçulas, propriedade de Marcolino Pereira Diniz, grande coiteiro de cangaceiros, mas que estava de mãos e pés atados devido à forma como se processou o ataque a Sousa. O governo João Suassuna (1924-1928) e o empenho do cunhado e tio de Marcolino, “Coronel” José Pereira Lima, era dar combates aos cangaceiros, pois, para tanto, eram invocadas as claúsulas do convênio anti-banditismo firmado em Recife (PE) em 1922, do qual o Estado da Paraíba participou e referendou, embora só passasse a cumpri-lo eficazmente depois do ataque cangaceiro à cidade de Sousa.
Conforme Érico de Almeida, autor de livro por título “Lampeão, sua história”, primeira edição de 1926, segunda e terceira de 1996 e 1998, pela Editora Universitária da Universidade Federal da Paraíba, foram recolhidas de dentro da casa de farinha do sítio Tataíra quatrocentas e noventa e duas cápsulas de balas de fuzil mauser DWN, modelo 1912. Isso atesta a razão da imortalidade de “Meia Noite” no mundo bandoleiro.
“Meia Noite” foi conduzido a um lugar ermo na serra do Pau Ferrado e executado por Manuel Lopes Diniz, conhecido por “Ronco Grosso”, e por homem da confiança de Marcolino, conhecido por “Tocha”, de cuja arma partiu projétil que matou o magistrado de Triunfo (PE), Dr. Ulisses Wanderley, no revéillon de 1923.
“Meia Noite” tornou-se nome tão respeitado entre os cangaceiros que em 1936, doze anos após sua morte, Lampião encontrou na área que atuava, no sertão de Alagoas, antigo companheiro de nome Joaquim Laurindo de Sousa, conhecido por “Moreno” no grupo liderado por Sinhô Pereira. Havia suspeita de que o antigo cangaceiro que lutou em Princesa, ao lado do “Coronel” José Pereira, havia participado da morte de “Meia Noite”. “Moreno” teve a casa invadida, sendo amarrado e inquirido a noite inteira sobre sua participação no assassinato do cultivado cangaceiro que enfrentou mais de oitenta homens na mais fantástica brigada do cangaço. Não satisfeito com as resposta, Lampião ordenou que bandoleiro conhecido por “Chumbinho” executasse o ex-companheiro de armas na frente da mulher e dos filhos.
Talvez “Meia Noite” tenha sido encomendado pelo juiz de Sousa, pois o empenho em buscar todos os cangaceiros que invadiram sua residência e o humilharam, quando do formidável ataque de 27 de julho de 1924 tornou-se questão pessoal a fim de fazer valer respeito à lei quando o sertão se mostrava terra de ninguém naqueles turbulentos idos dos anos vinte do século passado.
José Romero Araújo Cardoso. Geógrafo. Professor da UERN.