É complicado escrever uma simples resenha de todo um mundo. Pois o que Dostoiévski realiza em Os Irmãos Karamázov
é exatamente o que Mahler pretendia fazer com suas sinfonias, colocar
todo um mundo dentro delas. Acredito que ambos tenham conseguido.
Há vários planos de leitura do livro.
Pode-se ler os Karamázov como um romance de suspense — quem matou o
velho Fiódor? –, ou filosófico — o capítulo do Grande Inquisidor, Deus,
os problemas morais –, ou psicológico — o parricídio, os vários
conflitos, o duplo de Ivan e Smerdiakóv, as várias interpretações dos
pensamentos dos personagens. E, céus, deve haver outro planos de leitura
para este tremendo romance. Mas vou tentar um mínimo de organização.
A ideia de criar este drama ocorreu a Dostoiévski em 1874, mas o leitmotiv foi-lhe
dado ao acaso, cerca de trinta anos antes. Quando preso na Sibéria,
Dostoiévski tinha um colega chamado Ilinski, Dmitri Ilinski. Alegre,
fanfarrão, sempre despreocupado, ele negava ter sido o autor do crime
pelo qual estava na prisão: Ilinski teria assassinado o próprio pai,
Nikolai. A história é a seguinte: numa pequena cidade russa, pai e filho
se detestavam, brigavam publicamente, não sentavam na mesma mesa, etc.
Para piorar, o filho bebia e estava sempre metido em discussões e lutas
físicas, além de ser perdulário. Devia para meia cidade e era detestado.
Para piorar, o amigo de Dostô tinha avisado a todos na cidade que
mataria o pai na primeira chance que tivesse. O pai chamava-lhe de
facínora, não lhe dava mais dinheiro e fazia de conta que ele não
existia. Um dia apareceu morto, assassinado, mas Dmitri negava o crime,
apesar de tudo o que dissera antes. Dostoiévski logo saiu da prisão em
episódio bem conhecido. Acreditando na inocência de Dmitri, o escritor
ficou com a história trabalhando em sua cabeça. Quinze anos depois,
descobriu-se o verdadeiro assassino e Dmitri Ilinski foi libertado.
Durante todo este tempo Dostoiévski mantivera-se informado. A inspiração
é claríssima, tanto que nos primeiros manuscritos do romance, Karamázov
é chamado várias vezes de Ilinski. O escritor pediu que o erro fosse
corrigido.
O conflito pai x filho é explorado sob
diversas formas no romance. Se o centro do romance é o amor e ódio entre
o velho Fiódor e o filho mais velho, também há conflitos mais
silenciosos entre o velho e Ivan (o segundo filho) e entre o velho e o
suposto filho bastardo Smerdiakóv. Lendo-se os romances anteriores de
Dostô, vê-se que as personalidades de todos vinham sendo formadas há
tempo. É fácil ver paralelos na natureza dos personagens de diferentes
obras do autor: o terceiro filho Aliocha Karamázov e Grúchenka com o
príncipe Míchkin e Nastácia Filippovna (de O Idiota), Ivan Karamazov com Raskolnikov (de Crime e Castigo), o starietz Zossima com Tikhon (de Os Demônios).
Apesar da indiscutível qualidade de todos os grande romances de Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov tem
uma grandiosidade inalcançável. É um enorme painel russo, psicológico e
político, trabalho maior da vida de um escritor genial. Com vida
própria — separadas do autor — ali estão suas memórias de infância
ligadas às reflexões e experiências dos últimos anos. As imagens dos
irmãos Dmitri, Ivan e Aliócha — assim como a do bastardo Smerdiákov,
espécie de duplo de Ivan — talvez simbolizem diferentes estágios de
desenvolvimento espiritual do autor. O romance tem uma estrutura
complexa, multidimensional, de gênero difícil de definir. São eventos
que ocorrem em apenas duas semanas, mas nesse curto espaço de tempo se
encaixam tantas histórias, disputas, conflitos e confrontos ideológicos,
que estas seriam suficientes para vários romances de suspense, obras
filosóficas, crônicas familiares ou dramas domésticos.
Há duas longas e compreensíveis
interrupções na narrativa. A primeira serve para que Dostoiévski (ou
Ivan) escreva aquele que talvez seja o melhor capítulo da literatura de
todos os tempos. Trata-se do momento em que Ivan, num bar, narra para
Aliócha a Parábola do Grande Inquisidor. Jesus retorna à Terra,
mas o Grande Inquisidor, na pessoa de um velho bispo de 90 anos,
argumenta que sua vinda é inútil e que agora ele só atrapalharia a
Igreja. E condena-o à fogueira. (Este resumo chega a ser uma gozação,
tal a riqueza do texto). O segundo serve para que Aliócha conte a
história de seu mentor Zossima.
A ação principal do romance está na relação entre o velho Fiódor e Dmitri. O whodunit
é “Quem matou o velho Fiódor?”. E todos são desvairados, desesperados e
negligentes com a verdade e a moral. Todos os personagens parecem meio
loucos. A família Karamázov é apaixonada e violenta. O pai Fiódor e
Dmitri amam a mesma mulher. Dmitri acha que o pai lhe deve a herança da
mãe. Ambos são lascivos, rivais e imprevisíveis. Dmitri é um paradoxo.
Incapaz de se controlar, tem grande dignidade pessoal e é cheio de
justificativas. Ao contrário de seu pai, um cínico, Mítia visa os mais
altos ideais. É dotado daquela tal alma russa que o leva a picos e a
abismos como um ioiô. Dmitri Karamázov briga e cita Schiller. Quando
preso sob a acusação de assassinato, pensa no sofrimento dos outros e
chora.
Ivan não é nada disso. Inteligente e
profundo, é um filósofo centrado nos problemas mais irreconciliáveis
da existência humana: a natureza de Deus e a ideia de permissão.
Intelectual ateu, parece ter dentro de si um conflito permanente entre
liberdade e autoridade. O Grande Inquisidor não está
relacionado com a trama principal da novela. No entanto, sai de Ivan
esta que é a parte mais importante do ponto de vista das ideias contidas
no livro.
Aliócha é supostamente o herói do
romance. Vivia num mosteiro, mas foi mandado para o mundo. Profundamente
religioso, tudo compreende e passa o livro correndo de um lado para
outro, tentando conciliar todos. Sem ele, o livro não existiria. É um
personagem meio picaresco — vai de um lugar a outro e é uma espécie de
informante de todas as tramas paralelas do livro. Acaba conseguindo
conciliar apenas um grupo de crianças no belo final do romance.
Uma questão central na abordagem do
romance é notar que as ideias do autor estão muito bem escondidas. As
célebres citações que o livro contém foram todas rejeitadas por
Dostoiévski ainda em vida. Quando lhe atribuíram algumas citações, Dostô
respondeu simplesmente que não as assumiria: “Não sou eu quem diz isso,
é Ivan. A linguagem é dele, o estilo é dele, o pathos é dele e não meu.
Além disso, ele é muito jovem”.
No mundo criado por Dostoiévski, a
Rússia e o mundo aparecem como se fossem o reino dos Karamázov. A noção
da complexidade e da desorganização das relações talvez nunca tenha
ficado tão clara como neste romance. Ninguém é confiável. A maldade pode
explodir a qualquer momento. Todos dizem meias verdades por meio de
mentiras. Os atos de uns são conduzidos pelos pensamentos de outros. A
espiritualidade cristã é invocada a cada momento, mas sucumbe
às necessidades tirânicas de felicidade terrestre, à sensualidade e ao
álcool.
Numa frase, não dá para não ler.
P.S. — A tradução de Paulo Bezerra é
incontornável. Se hoje você ler outra edição em português, não estará
tão próximo do original.
Do Blog do Milton Ribeiro
Do Blog do Milton Ribeiro
Nenhum comentário:
Postar um comentário