Numa entrevista ao Brasil de Fato, o paraibano Paulo
Bezerra, um dos nossos principais tradutores do russo, foi perguntado sobre o
melhor livro para iniciar a leitura de Dostoiévski. Ele respondeu: “Sempre sugiro Crime e
Castigo, que tem como personagem central Raskólnikov, um jovem excluído que
pensa como jovem, filosofa como jovem, e como jovem tem um amor verdadeiro pela
vida, pelo ser humano (especialmente as crianças) e acaba amando Sônia de
verdade.”
Ora, Raskólnikov ficou para muita gente como símbolo do
assassino frio e cruel que, depois de praticado o crime, começa a se roer de
remorsos. (O “castigo” do título é o tormento mental do personagem; o desfecho
jurídico se dá apenas nas 20 últimas páginas.) Paulo Bezerra está descrevendo
apenas o lado bom de Raskólnikov, um jovem brilhante e arrogante que foi atraído
pelo lado negro da Força. Ou seja: pela húbris, pela crença de que é superior
aos demais, pela crença de que a satisfação de um desejo seu é mais importante
do que a vida de alguém.
A raiz das ações dele está no artigo “A respeito do crime”
que Raskólnikov publicara, meses antes, num jornal. Nele, o rapaz explica que
há dois tipos de indivíduos, os ordinários e os extraordinários; e que estes
últimos têm direitos morais mais amplos do que os primeiros. Isso não significa
(diz ele) que Isaac Newton, um extraordinário, tivesse o direito de sair
matando ou roubando qualquer um que encontrasse na rua. Mas Newton, tendo feito descobertas cruciais
que trariam um enorme benefício à humanidade, se visse essas descobertas sendo
bloqueadas ou impedidas por “um, dez, cem ou mais homens”, teria todo o direito
de eliminar esses homens, para levar sua descoberta a toda a humanidade.
Dostoiévski incrusta essa teoria, no romance, através de um
artigo publicado pelo personagem. Raskólnikov na verdade não sabia que o artigo
(enviado para um jornal que acabou falindo) tinha sido publicado. Só depois do
crime alguém o avisa de que essa justificação teórica tinha sido dada a
público. Raskólnikov, assim, trai a si mesmo, chama atenção da polícia sobre si
mesmo, como se o “demônio da perversidade”, de Edgar Allan Poe, tivesse baixado
sobre ele.
Esse mesmo efeito de imprevisto se dá na cena do
crime. Ele entra, mata a velha usurária que guardava jóias e dinheiro em casa,
mas esquece a porta aberta ao entrar. A irmã da velha entra, vê tudo, e ele a
mata. Não importa se o primeiro crime era filosoficamente justificável. No
segundo, prevaleceu apenas a necessidade fatal de não deixar testemunhas. O
crime se ampliou, como sempre se amplia, numa direção que ele jamais imaginara.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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