Algum tempo atrás, numa festa de cantadores em São José do
Egito, subi ao palco para recitar uns versinhos. Macaco velho que sou, tinha no
bolso um dos meus cordéis, pra não me perder. Mal o puxei do bolso, vi a
platéia se desinflar da própria expectativa. O Vale do Pajeú não é apenas um
lugar onde se venera a deusa Poesia. Venera-se igualmente a deusa Memória, as
duas uma ao lado da outra, em dois altares igualmente enfeitados de fitas,
ex-votos e velas. Ali, não basta saber fazer versos; não basta entender o que é
um verso bem feito; não basta ter o tutano e a medula necessários para subir
num palco e enfrentar o Monstro de Mil Rostos. Tudo isso não é nada quando o
cara escreve um poema e sobe para declamá-lo com um ridículo papel na mão. Com
uma “cola” na mão, na frente de todo mundo.
O camarada que precisa ler um poema é porque não gravou o
poema em si mesmo, não fez do poema uma parte de si, ao preço de minutos ou
horas de um ritual mnemônico que não está muito distante da prece religiosa.
Por outro lado, essa peculiar dramaturgia pajeuzeira mostra o quanto está verde
e viçoso o ramo da oralidade entre nós. Os recitadores são às vezes jovens,
rápidos, precisos, verdadeiras metralhadoras, de carga inesgotável e
transbordante. Outras vezes são anciãos compassados capazes de falar
lentamente, sem nunca alterar o passo, seja rememorando, seja reproduzindo o
verso, e dali passar por associação de idéias para outro parecido, e deste para
um terceiro porque tocou no nome de Fulano, e daí brota mais um episódio
semelhante... e as horas se passam e aquela fita não para de rodar.
A memória da gente, eita oceano profundo. Mas é um
oceano generoso, porque se você tiver cuidado você vai ver que tudo que esse
oceano engole ele devolve inteiro, depende só de você. E às vezes você já está
tomando umas e outras há umas dez ou doze horas, o bar está meio fora de foco,
mas alguém pede pra você dizer aquele verso de Fulano. Você vira um gole e
procura no oceano de dentro de si. Como danado é esse verso? Começa como? E de
pouquinho, daquelas águas escuras e profundas, daquela nossa cisterna cheia de
ecos, começa a brotar um pedaço, um cotoco de verso aqui, um frangalho de rima
ali, uma redondilha rasgada acolá, e outras palavras vêm surgindo luminosas,
dão um pequeno pulinho ao chegar à superfície, ficam boiando ali, e como por um
milagre da matéria essas palavras vão se alinhando, ganhando forma e sentido,
como se tivessem vindo todas soltas e misturadas mas com a ordem de se recompor
quando chegassem à tona, e você cofia o rosto grisalho ou imberbe, ergue o
indicador e começa a recitar.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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