É uma rotina antiga, confortável. Como toda rotina, é uma
tentativa de volta a um passado onde tudo correu bem. Quando D. Helena pega
Joãozinho e desce pelo elevador de serviço, ao lusco-fusco do entardecer, todos
os dias, religiosamente, ela, aos 72 anos, está fazendo na verdade uma viagem
no Tempo. Na cabeça dela, descer para o passeio diário de Joãozinho não é
apenas uma ida até a pracinha, é uma visita ao dia de ontem. O que ela espera é
voltar ao dia de ontem, a tudo que ontem ocorreu de confortável, de
reconfortante, o diálogo com as empregadas domésticas e as babás, com os donos
de pets, com o pessoal de short e tênis acenando um boa-noite arquejante nas
subidas e descidas do quarteirão. Ela quer voltar às coisas boas do dia de
ontem, quer que aquilo-bom que já aconteceu venha e aconteça de novo, com alguma variante ou
interferência, tanto faz, desde que o dia-de-ontem-revisitado-hoje seja tão
pacífico, pacato, cordeiro, manso, quanto o dia de ontem original.
Ela vai portanto à área de serviço, onde Joãozinho já a
espera, olhos brilhantes, cheio de expectativa. Recolhe os jornais sujos que
forram o chão, espalha jornais limpos, troca a água. Prende a correntinha à
coleira e Joãozinho já se agita feliz. Em momentos assim ela lembra às vezes o
dia em que o conheceu e o escolheu, no meio de tantos outros, todos tão
abandonadinhos, todos tão carentes. Acompanhada por dois funcionários ela se
debruçou na mureta, ficou olhando aquelas criaturinhas, coitadas, tão sem
ninguém. E viu os olhinhos pretos dele fitos no dela, e exclamou: “Aquele! Vai
ser aquele ali! Olha como ele me olha! Parece até que está me
reconhecendo!” Foram poucos dias de
assinatura de documentos, exames médicos, termos de responsabilidade, e
Joãozinho veio e se instalou no centro da vida dela. Como um pequenino
imperador, alguém que foi feito só para dar amor, dar gratidão.
Ela caminha pela calçada, mantém corrente curta para
Joãozinho não se chegar demais ao meio fio, não atrapalhar a passagem dos
transeuntes. Ele tem algumas vitrinas favoritas onde se detém fascinado vendo
aquelas cores e luzes que decerto não compreende. Ela segue até a praça, onde
há um vasto quadrilátero cercado onde ele pode ser solto, correr um pouco,
brincar com os outros, enquanto os donos se cumprimentam, conversam amenidades,
trocam conselhos sobre alimentação, remédios antipiolhos e tudo o mais. Hora de
voltar, Joãozinho! As primeiras estrelas já brilham no céu. Ele volta, meio
relutante, meio satisfeito, mas essa meia-horinha é tão importante para o
coitado, olha só a felicidade nos olhos dele, parece gente.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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