As chamadas verdades essenciais do homem lembram-me às vezes números
de um grande programa que os tambores anunciam pelas ruas fora que vai
ser deslumbrante e cumprido à risca, e que os pobres atores, à noite,
realizam sabe Deus como, a passar em claro cenas inteiras. A afirmar e a
prometer, nenhum bicho leva a palma ao colega antropóide. Mas é vê-lo
em plena representação, ou depois dela, no camarim, nu e lavado. Que
miséria! A justiça imanente que pregou e demonstrou, acrescenta-lhe, por
segurança, o ergástulo e o carrasco; ao pecado, junta-lhe a confissão; à
predestinação, o livre arbítrio; à morte, a ressurreição. Lembra-me
sempre a velha história dos castelos de heroísmo e fidelidade, com a
portinha da traição disfarçada nas muralhas...
Miguel Torga, in "Diário (1943)"
Miguel Torga, in "Diário (1943)"
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