Meu pai começou a envelhecer pelos olhos, que amanheciam a cada dia
mais machucados, como se ele tivesse passado a noite chorando. Mas
meu pai nunca foi homem de chorar, nem mesmo depois que minha mãe se
mandou com um rapaz bem mais jovem do que ela. Desde então, ele
passou a chamá-la de “finada”, como se isso não me dissesse
respeito. Quando eu perguntava por ela, ele dizia que, se eu
quisesse mesmo saber, que fosse atrás e ficasse por lá, nunca mais o
procurasse. “Puta não tem destino”, era assim que ele falava, como
se eu não fosse seu filho. Eles se casaram muito jovens só porque
ela engravidou de mim e ele jogava isso na minha cara sempre que a
vida lhe pregava mais uma.
De minha mãe só
fiquei sabendo que foi morar na América, imigrada à força com o tal
rapaz. Meu pai rasgou todas as fotos dela e depois jogou no lixo.
Consegui salvar uma, que deu para remendar. Ele lamentava que ela
não tivesse se afogado no rio Grande ou morrido seca no deserto. Mas
parece que tudo correu bem. Ela nunca mais deu notícia, nem a
família dela sabe direito por onde ela anda. Falam que ficou rica,
sabia fazer unha como ninguém, e as americanas gostam disso. Meu
sonho também era imigrar, mas foi ficando cada dia mais distante,
até sumir de vez.
Meu pai tocou
sua vida como se eu nem fosse seu filho. Não deixei de estudar
porque os padres do colégio me aceitaram em troca de pequenos
serviços. Um deles era fazer banca de português e francês com os
meninos mais fracos. Por meu pai, eu teria largado logo os estudos
para trabalhar numa oficina mecânica. “Estudo só atrapalha”, era o
que ele sempre dizia. Só não entrei na faculdade para não ficar
dependendo dele por mais tempo.
Acho que a
raiva de meu pai foi crescendo porque, a cada dia, eu ficava mais
parecido com minha mãe: pernas curtas e grossas, o mesmo tipo
atarracado, bem diferente do dele, todo comprido e seco. Quando quer
me ofender, diz que não entende como as pessoas se deixam engordar,
parece que não sabem dominar a própria boca, engolindo tudo que veem
pela frente. Acho que minha mãe deve estar bem gorda, a família dela
é só de gordos. Desde que me alcanço, me vejo lutando contra a
balança, para fugir das calças largas que via nos meus tios, mas é
muito difícil a gente se livrar do corpo que herda dos seus.
Sempre me doeu
ver meu pai desviar a vista de mim quando se sentava à mesa. Quando
eu era pequeno e as pessoas queriam infernizá-lo, era só dizer que
eu estava cada vez mais parecido com minha mãe. Ele me arrastava e,
em casa, me dava uma colher de sopa bem cheia de óleo de fígado de
bacalhau. Quando cresci, parei de tomar, num primeiro sinal de
independência. Hoje tento uma aproximação e não consigo. Ele sempre
me afasta, como se estivesse vendo o diabo em mim. Me olho no
espelho e sinto que realmente tenho os olhos de minha mãe, redondos
e pretos, sempre espantados com o mundo. Sim, eu me espanto com a
frieza de meu pai, com sua falta de amor por mim. Nunca foi capaz de
me dar um abraço. Esperar ouvi-lo dizer que me ama seria querer
demais. Quando criança, chegou a fazer urna coisa que nunca vou
esquecer. Como eu era muito apegado a um gato que tinha encontrado
na rua, num dia de raiva, ele o arremessou contra a parede,
salpicando tudo de sangue, e ainda me castigou porque me
descontrolei a chorar.
Até entendo meu
pai ter se desiludido da vida. Namora da firme, ele nunca mais quis
ter. Arrumava umas mulheres de vez em quando. Trazia aqui pra casa
e, no outro dia, as despachava aos berros, depois de muito discutir.
Nunca pagava o que elas pediam. Dizia que elas não sabiam fazer
direito o que ele gostava, isso com as palavras mais sujas, como se
durante a noite elas não o tivessem feito soltar belos gemidos.
Quando se sentava à mesa para o café, eu via suas costas lanhadas,
arranhões que não pareciam feitos só com as unhas. Era o único
momento em que via seu rosto mais aliviado, como se aqueles lanhos
fossem o sinal de que a vida às vezes podia ser boa. Eu ficava com
vergonha dele e daquelas mulheres de saia curta e peitos derramados,
a rua toda cochichando que, se o Juizado soubesse, ele perderia a
minha guarda. Tive muitos pesadelos por causa disso, mas felizmente
nada aconteceu. Quando cresci um pouco mais, ele as trazia e, de
madrugada, as empurrava para o meu quarto, num gesto de amizade que
me deixava tão comovido que eu não conseguia fazer nada com elas.
O tempo passa
sem a gente sentir. Um belo dia a velhice chega e se instala de vez.
Penso muito em minha mãe. Mulher se destrói mais rápido e ela deve
estar imensa. Fico imaginando como teria sido seu envelhecimento,
porque aí eu saberia como seria o meu. Em parte, eu já era igual ao
meu pai, dirigindo um táxi desembestado pelas ruas, com a
perspectiva de ganhar cada vez menos. Acho que minha mãe deve ter
envelhecido pelo queixo, que na foto que salvei já dava sinais de
divisão. Ou talvez pelas bochechas, que desabam com tanta
facilidade. Se alguns começam pelo queixo ou pelos olhos, outros
começam pela cintura, onde as gorduras se depositam, sem nenhuma
delicadeza.
Antonio Carlos Viana
Texto extraído do livro "Cine Privê", Editora Cia. das Letras -
São Paulo (SP) - 2009 - pág. 51.
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