Algumas
ideias aderem a nosso espírito e não desgrudam
Estou, mais uma
vez, a reler os Pensamentos do francês Joseph Joubert. Algumas
ideias aderem a nosso espírito e não desgrudam. Assim é meu caso pessoal com
Joubert: sou seu prisioneiro. Mas quem foi ele afinal? Nascido no coração do
século 18, Joseph Joubert foi amigo de Diderot, e também de Chateaubriand, de
quem chegou a se tornar secretário. Faleceu em 1824, em Paris, aos setenta
anos. Moralista e ensaísta, é quase completamente desconhecido no Brasil. Leio
e releio seus pensamentos na edição espanhola da Edhasa, de 1995, livro
organizado por Carlos Pujol.
Não é preciso uma
ordem, já que Joubert pensa e escreve por aforismos — isto é, por raciocínios
compactos e dispersos, expressos em poucas palavras. Verdadeiras flechadas.
Desde logo, seu poder de síntese me fascina. Abro ao acaso o livro organizado
por Pujol. Esbarro em uma primeira frase: “Há muitíssimas coisas que só se
fazem bem quando se fazem por necessidade”. O filósofo fala de mim — ou pelo
menos é o que sinto. É o que sentimos quando lemos escritores que nos desafiam.
Uma necessidade secreta me leva a voltar a seus pensamentos.
Algumas linhas à
frente, outra ideia completa a primeira: “A idade. O espírito não se apaga, mas
há que alimentar esse fogo com outra lenha”. Chego, esse mês, aos 65 anos de
idade. Preciso de novos alimentos. Estranho: cada vez que releio Joubert, tenho
o sentimento de que o leio pela primeira vez. Na verdade, leio sim. O que li
ontem não é mais o que leio agora. Sua escrita me provoca muitos sustos. Ela me
desloca e esbofeteia.
Diz Joubert: “A
filosofia dos antigos. Prefiro suas nuvens a nossos seixos”. O pensamento
contemporâneo parece, de fato, atulhado de cascalhos. Frequentar a internet,
por exemplo, é muito atraente e divertido, mas é também dispersivo. Seixos são
fragmentos de rocha, pedras toscas que, em vez de nos reforçar, nos ferem.
Restam cicatrizes, que lemos com dificuldade. Na grande rede, a fragmentação,
em vez de nos elevar, nos arranha, sem chegar, no entanto, a rasgar nosso
sangue. Melhor a elevação dos antigos, que nos leva a tomar distância de nós
mesmos. E a nos olhar com vigor, mas também com piedade. Mas é preciso ter
cuidado com as conclusões. Alerta Joubert: “O orgulho é o cúmulo da
ignorância”. Não acreditar demais em si.
Em Joseph
Joubert, a dispersão é um antídoto contra a arrogância do desfecho. Ele escreve
por impulsos, assim como pensamos por impulsos também. O pensamento odeia as
conclusões últimas, porque as percebe como uma amputação. Devemos nos dispersar
para nos salvar. Alerta: “Toda loucura se deve a um excesso de rigor, de tensão
e de atenção exclusiva”. O melhor pensamento, o mais fértil, é aquele que surge
da divagação. E, assim, se liberta da loucura da precisão. “Os poetas, buscando
a beleza, encontram mais verdades que os filósofos que buscam a verdade”, diz.
Mas a dispersão é diferente da fragmentação — aquela que fere e afasta. No
mundo virtual, pisamos em cacos de vidros. Lendo Joubert, em um tapete de
plumas.
Joubert
pensa e escreve por aforismos — isto é, por raciocínios compactos e dispersos,
expressos em poucas palavras. Verdadeiras flechadas. Desde logo, seu poder de
síntese me fascina.
É preciso,
contudo, não ser arrogante e reconhecer que mesmo a imaginação tem sua origem
em nossas limitações. “O medo nutre a imaginação”, ele escreve. É de algumas de
nossas piores coisas, de nossos mais brutais defeitos que, enfim, arrancamos a
beleza. A arrogância — que crê que o bom só procede do bom — é, na verdade, um
obstáculo. Precisamos aceitar o que temos de pior para chegar a um pouco do que
temos de melhor. Lembro aqui de um pensamento de Fernando Pessoa, que capturo
em O eu profundo. Diz assim: “A lucidez só
deve chegar ao limiar da alma. Nas próprias antecâmaras do sentimento é
proibido ser explícito”, Pessoa escreve. Também Clarice não se cansou de nos
dizer que a verdade é sempre implícita e, na maior parte das vezes,
inalcançável. Resta-nos evocá-la. Roçar de leve em sua face áspera. E ficar com
isso.
É por isso também
que Joubert faz a defesa do silêncio — o que é muito útil em nossos tempos de
zoeira e dispersão. Escreve: “O silêncio. Delícias do silêncio. Os pensamentos
hão de nascer da alma, e as palavras do silêncio. Um silêncio atento”. Os
meninos que esbofeteiam imagens nas lan houses navegam em um turbilhão. Não conseguem
ficar quietos, não podem silenciar. A máquina devora seus corações. Quantos
deles podem, de fato, permanecer quietos? O silêncio — a solidão — lhes é
insuportável. Contudo, e ainda que pareça um paradoxo, é do silêncio que as
palavras, enfim, surgem. Imperfeitas. Insuficientes. Cheias de defeitos, mas
também de emoção. Sempre me surpreendo com esses meninos que hoje, além da fast
food das cadeias
internacionais, se empanturram de imagens coloridas. Encontro um comentário de
Joubert que talvez lhes caiba: “Mentes esfregadas pelo fósforo e que parecem
luminosas. E, no entanto, brilham, mas não iluminam”.
A dispersão no
pensamento de Joubert, em vez de levar a um cenário estilhaçado, promove uma
espécie de flutuação. Um recolhimento — como o do menino que, armado só com uma
lanterna, se esconde sob os lençóis para ler o Robinson
Crusoe. Eu mesmo fiz isso aos onze anos de idade, e a
experiência da caverna marcou minha vida. Já tentei escrever um livro sobre
ela, mas as palavras não expressam o que vivi, e desisti. Talvez meu problema
tenha sido exatamente este: ter me deixado guiar pelo ideal da precisão. As
palavras, por melhor que as definam os dicionários, desconhecem o rigor
absoluto. São ambíguas, vivem de metáforas e de alusões. São insuficientes.
Não é fácil, sequer,
escutar a nós mesmos. Volto a Joubert: “A alma fala consigo mesmo em
parábolas”. Fala de modo indireto, evoca mais do que fala. Trata-se de uma fala
que nem sempre podemos traduzir, podemos talvez apenas sentir. Infelizmente,
vivemos o século do estilo oficial, da linguagem padronizada, do culto ao
correto. Nesse sistema de rigidez, as alusões nos escapam, e com elas o
espírito individual também. Anota Joubert: “Maneira, de mania. Se é
involuntária, é um tic. Se é natural, nós a chamamos de originalidade. Se é
deliberada, estudada, é jargão, charlatanismo”. Só a volta ao pessoal e ao que
é natural abre caminho para uma chegada a si. No ano de 1805, em pleno
alvorecer do século 19, Joubert escreve ainda: “Muita inchação nas mentes e
muita magreza no estilo: uma das características desse século”. De que século
ele realmente fala?
JOSÉ CASTELLO
É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar,
entre outros livros. Vive em Curitiba (PR).
(http://rascunho.com.br/colunistas/josecastello/as-mentes-inchadas;
acesso em: 22-03-2016)
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