Há anos estou a escrever um romance só para me divertir.
Aproveitando esse clima de fim de carnaval, de começo de semestre, em
que já estamos de baixo do mau tempo político, resolvi publicar seu
primeiro capítulo aqui. Chama-se A Fábula do Imperador Chinês. O
livro não tem nada a ver com nada, muita gente vai ficar pensando “o
que deu na Marcia para publicar tal absurdo”, não é um texto político em
sentido estrito, nem trata de questões urgentes, nem que sirvam à nada,
é uma pura fantasia que conta com a maldade do leitor nesse momento.
Mas talvez haja alguém que possa se divertir com ele. E, como a falta de
imaginação está nos fazendo muito mal, ao pensar numa política da
ficção, quem sabe a gente possa começar aceitando um inicial convite ao
sonho.
O Imperador Chinês
Ao acordar Lady N percebeu o imperador chinês, herdeiro do trono do
grande Hui-Cheng, colado à parede como display de papel. Correu para
perto com um grito. Durante anos ele esteve sentado ao seu lado, meio de
costas impedindo-lhe de ver seu rosto. Tentava esboçar duas palavras
finalmente ditas na noite passada. As palavras surgiram como papelão que começa a se rasgar, ou como o pássaro de asa cortada estranhamente pousado à janela, cujos movimentos observei no fim da tarde nublada enquanto Lady N dedicava-se a pentear os próprios cabelos.
Isso foi há muitos anos. Lady N preserva, contudo, depois de tanto
tempo, os mesmos longos cabelos pelos quais daria a própria vida.
As palavras ditas pelo homem de olhos puxados eram mágicas, e eram
tenebrosas. Palavras que não deveriam ter sido ditas por ninguém, muito
menos naquelas circunstâncias a uma pessoa naquele estado. A palavra no lugar da pálpebra,
segundo a expressão poético-licenciosa de Lady N que, embora soubesse
se expressar com mais objetividade, sempre preferia dar um ar de
mistério a tudo o que dizia. A que não se ouve por dentro, disse
em sussurro ao delegado que, fazendo as vezes de carcereiro na
delegacia da pequena cidade, a conduziu aos fundos da construção
improvisada onde ela esperaria o camburão que a levaria ao presídio. Faca bem afiada das usadas para matar porcos,
afirmou com a certeza dos especialistas enquanto o gentil homem
chaveava a porta da cela com um olho amedrontado e o outro condoído. O
imperador cortou-lhe a cabeça com um golpe veloz, ela contava, seu corpo
pendeu soltando-se com leveza, pois estava magra como tecido de
algodão. Era assim que descrevia a si mesma deixando o delegado
preocupado como um filho que se condói de uma mãe alucinada. Ali, pura
cabeça, ela procurava o corpo, implorando a qualquer um que lhe desse a
chance de recuperar suas partes como se alguém pudesse fazer algo por
ela.
Sua magreza era um escândalo a olhos vistos, todos percebiam que algo
não ia bem com ela há muito tempo. Mas nesses casos, ninguém tem
coragem de dizer nada. O fato de que não comesse há dias piorava ainda
mais a situação de nossa heroína. O delegado, sabendo que na delegacia
nada havia para comer, perguntou-lhe se aceitava uma maçã, mas ela
respondeu que se alimentava há muito tempo apenas de carne seca. Sabendo
que há alguma verdade em toda a mentira, o delegado, que viu em Lady N
algo de muito familiar, prometeu que estaria com ela, que não a deixaria
só, que viria ouvi-la em breve e traria algo de comer que fosse de seu
agrado como empadas de carne seca.
Lady N, podia estar louca, era a desconfiança geral, mas de uma coisa
ela sabia, e não podemos contestá-la, ela não sentiu dor alguma no
momento do golpe, apenas o choque no atravessamento certeiro da faca.
Apesar do pescoço cortado, Lady N pode se mover e olhar de perto a fotografia, como ela nos relatou no momento em que fomos visitá-la. No lugar do corpo usava o soldado igualmente chinês que servia café da manhã nos aposentos que ela ocupava com o imperador. Na ponta da lança, a cabeça com os cachos dos cabelos soltos e os olhos bem abertos, como dos que morrem assustados.
Aqui a imagem do soldado com a cabeça na ponta da lança. Na falta, usamos esse, por enquanto:
Durante anos vitrificados atrás de cortinas de seda o imperador
amou-a desenhando três linhas sobre papel de arroz cujas folhas ela
comprava todos os meses na loja Ching perto do cais do porto. Os vendedores de lá, remanescentes da pequena família Chun, informaram-lhe há semanas que não haveria mais fornecimento de tão afilado artefato. Restou a seguinte etiqueta.
Lady N, temendo desagradar seu homem, procurou este papel por meses
em todos os mercados da cidade sem jamais reencontrar o finíssimo
produto.
Imóvel sobre seu trono, o imperador parecia não se importar.
No silêncio infinito que ambientava a solidão do homem, enlaçando-os em uma espécie de união mística,
Lady N acreditou que estaria protegida para sempre de todo frio com os
traços inapagáveis do caligrama a tinta negra que o imperador
vagarosamente desenhava para provar-lhe seu amor. Nem uma lágrima de
dúvida mancharia o cenário de névoa em que viveram por tantos e tão comoventes anos
cujos dias transcorriam um por um, cada um na sua vez, como elefantes
indianos em fila, certos de encontrar o melhor modo de seguir.
Lady N era uma pessoa nada fácil de convencer, mas não resistia a uma
fila bem organizada, sobretudo quando lembrava de seus tempos no circo
com sua elefanta Janaína. Ela que já estivera tão próxima de um elefante
agora teria que contentar-se em ser só uma cabeça cortada por um
imperador chinês.
Essas lembranças faziam pensar ainda mais em seu corpo. Quando se é
uma cabeça pensa-se mais ainda. O corpo que falta torna-se um objeto de
desejo insuportável. O corpo, ela teve tempo de dizer antes que o delegado sumisse no corredor escuro, o corpo é algo que pesa.
Sabendo que tudo não passa de alucinação, ao mesmo tempo que, tendo em
vista que há alguma verdade em toda loucura, é que aprendemos a levar a
sério o que ela tentou nos dizer.
Em um primeiro momento, sei, sabemos, que ela pensou, que neste
momento tenso em que se perde a cabeça, ou melhor, em que ela perdeu o
corpo, e assim parte considerável de sua vida, que fora a falta do papel
o motivo da decapitação. Somente agora, quando tudo se encaminha para o
fim, é que a resposta aparece com a força aterradora da verdade que não
se mede nas formas triviais.
Antes desencorpada do que acéfala, pouco antes de ir
parar na delegacia onde a encontramos dentro de uma cela, Lady N olhava
para o display tencionando as pálpebras. Um filete de sangue mancha a
imagem dividindo-a em duas. Do lado de cá, na pequena antessala do
quarto, o soldado tenta levá-la para longe. Ela tem na língua a força
descomunal do seu grito. Lança-se na direção do seu desejo, e se trata
de um desejo muito forte. Percebendo-se cansada, ela ordena ao soldado
que descanse. Não é fácil imaginar Lady N nessa situação, corpo e
cabeça, distanciados, verdadeiramente separados por um golpe mortal e
dando ordens a um soldado que a conduz para longe de si mesma. O soldado
obedece por alguns minutos até que, com a renovação dos esforços
sonoros de Lady N, três ou quatro frases depois, está novamente a
postos. Espantada que sua mera voz ecoe em sua cabeça e seja capaz de
dobrar um homem tão grande, é assim que ela está.
Mas a história de Lady N apenas começou.
Mesmo tendo sobre o soldado todo o poder, Lady N teme o soldado como temia o imperador chinês quando apareceu à sua porta.
Márcia Tiburi
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