Aconteceu-me ontem uma coisa realmente extraordinária. Não tendo conseguido conter-me em
casa, desci para a Avenida, segundo habito antigo. Já ela estava repleta de
carnavalescos, que aproveitavam, como podiam, sua terceira noite.
Pus-me a examinar colombinas fáceis, do lado da Praça Sete, quando inesperadamente me vi envolvido no fluxo de um cordão. Procurei desvencilhar-me, como pude, mas a onda humana vinha imensa, crescendo em torno de mim, por trás, pela frente e pelos flancos. Entreguei-me, então, aquela humanidade que me pareceu mais cansada que alegre. Os sambas eram tristes e homens pingavam suor. Um máscara-de-macaco deu-me o braço e mandou-me cantar. Respondi-lhe que, em rapaz, consumi a garganta em serenatas e que esta, já agora, não ajudava. Imagino a figura que fiz, de colarinho alto e pince-nez, no meio daquela roda alegre, pois os foliões e engraçaram comigo, e fui, por momentos, o atrativo do cordão. Tanto fizeram que, sem perceber o disparate, me pus a entoar velha canção de Vila Caraíbas.
Uma gargalhada espantosa explodiu em torno de mim. Deram-me uma corrida e, depois de me terem atirado confete à boca, abandonaram-me ao meio da rua embriagado de éter. Novo cordão levou-me, porém, para outro lado, e, nesse vaivém, fui arrastado pelos acontecimentos. Um jato de perfume me atingia às vezes. Procurava, com os olhos gratos, a origem dessa caricia, mas percebia, desanimado, que aquele jato resvalara de outro rosto a que o destinara uma boneca holandesa. Contudo, aquelas migalhas me consolaram e comoviam. Dêem-me um jato de éter perdido no espaço e construirei um reino. Mas a boneca holandesa foi arrastada por um príncipe russo, que a livrou dos braços de um marinheiro.
Bebendo aqui, bebendo ali, acabei presa de grande excitação, correndo atrás de choros, de blocos e cordões. Não sei como, envolvido em que grupo, entrei no salão de um clube, acompanhando a massa na sua liturgia pagã.
Lembra-me que homens e mulheres, a um de fundo, mãos postas nos quadris do que ia à frente, dançavam, encadeados, e entoavam os coros que descem do Morro.
Toadas tristes, que vêm da carne.
A certo momento, alguém enlaçou o braço, cantando: “Segura, meu bem, segura na mão, não deixes partir o cordão...” O braço que se lembrou do meu braço tinha uma branca e fina mão. Jamais esquecerei: uma branca e fina mão. Olhei ao lado: a dona da mão era uma branca e doce donzela. Foi uma visão extraordinária. Pareceu-me que descera até a mim a branca Arabela, a donzela do castelo que tem uma torre escura onde as andorinhas vão pousar. Pobre mito infantil! Nas noites longas da fazenda, contava-se história da casta Arabela, que morreu de amor e que na torre do castelo entoava doridas melodias.
Efeito da excitação de espírito me que me achava, ou de qualquer outra perturbação, senti-me fora do tempo e do espaço, e meus olhos só percebiam a doce visão. Era ela, Arabela. Como estava bela! A música lasciva se tornou distante, e as vozes dos homens chegavam a mim, lentas e desconexas. Em meio dos corpos exaustos, a incorpórea e casta Arabela. Parecia que eu me comunicava com Deus e que um anjo descera sobre mim. Meu corpo se desfazia em harmonias, e alegre música de pássaros se produzira no ar. Não me lembra quanto tempo durou o encantamento e só vagamente me recordo de que, em um momento impossível de localizar, no tempo e no espaço, a mão me fugiu. Também tenho uma vaga idéia de que alguém me apanhou do chão, pisado e machucado, e me pôs num canapé onde, já sol alto, fui dar acordo de mim.
O mito donzela Arabela tem enchido minha vida. Esse absurdo romantismo de Vila Caraíbas tem uma força que supera as zombarias do Belmiro sofisticado e faz crescer, desmesuradamente, em mim, um Belmiro patético e obscuro. Mas viviam os mitos, que são o pão dos homens.
Nesta noite de quarta-feira de cinzas, chuvosa e reflexiva, bem noto que vou entrando numa fase da vida em que o espírito abre mão de suas conquistas, e o homem procura a infância, numa comovente pesquisa das remotas origens do ser.
Há muito que ando em estado de entrega. Entregar-se a gente as puras e melhores emoções, renunciar aos rumos da inteligência e viver simplesmente pela sensibilidade — descendo de novo cautelosamente, a margem do caminho, o véu que cobre a face real das coisas e que foi, aqui e ali, descerrado por mão imprudente — parece-me a única estrada possível. Onde houver claridade, converta-se em fraca luz de crepúsculo, para que as coisas se tornem indefinidas e possamos gerar nossos fantasmas. Seria uma fórmula para nos conciliarmos com o mundo.
Pus-me a examinar colombinas fáceis, do lado da Praça Sete, quando inesperadamente me vi envolvido no fluxo de um cordão. Procurei desvencilhar-me, como pude, mas a onda humana vinha imensa, crescendo em torno de mim, por trás, pela frente e pelos flancos. Entreguei-me, então, aquela humanidade que me pareceu mais cansada que alegre. Os sambas eram tristes e homens pingavam suor. Um máscara-de-macaco deu-me o braço e mandou-me cantar. Respondi-lhe que, em rapaz, consumi a garganta em serenatas e que esta, já agora, não ajudava. Imagino a figura que fiz, de colarinho alto e pince-nez, no meio daquela roda alegre, pois os foliões e engraçaram comigo, e fui, por momentos, o atrativo do cordão. Tanto fizeram que, sem perceber o disparate, me pus a entoar velha canção de Vila Caraíbas.
Uma gargalhada espantosa explodiu em torno de mim. Deram-me uma corrida e, depois de me terem atirado confete à boca, abandonaram-me ao meio da rua embriagado de éter. Novo cordão levou-me, porém, para outro lado, e, nesse vaivém, fui arrastado pelos acontecimentos. Um jato de perfume me atingia às vezes. Procurava, com os olhos gratos, a origem dessa caricia, mas percebia, desanimado, que aquele jato resvalara de outro rosto a que o destinara uma boneca holandesa. Contudo, aquelas migalhas me consolaram e comoviam. Dêem-me um jato de éter perdido no espaço e construirei um reino. Mas a boneca holandesa foi arrastada por um príncipe russo, que a livrou dos braços de um marinheiro.
Bebendo aqui, bebendo ali, acabei presa de grande excitação, correndo atrás de choros, de blocos e cordões. Não sei como, envolvido em que grupo, entrei no salão de um clube, acompanhando a massa na sua liturgia pagã.
Lembra-me que homens e mulheres, a um de fundo, mãos postas nos quadris do que ia à frente, dançavam, encadeados, e entoavam os coros que descem do Morro.
Toadas tristes, que vêm da carne.
A certo momento, alguém enlaçou o braço, cantando: “Segura, meu bem, segura na mão, não deixes partir o cordão...” O braço que se lembrou do meu braço tinha uma branca e fina mão. Jamais esquecerei: uma branca e fina mão. Olhei ao lado: a dona da mão era uma branca e doce donzela. Foi uma visão extraordinária. Pareceu-me que descera até a mim a branca Arabela, a donzela do castelo que tem uma torre escura onde as andorinhas vão pousar. Pobre mito infantil! Nas noites longas da fazenda, contava-se história da casta Arabela, que morreu de amor e que na torre do castelo entoava doridas melodias.
Efeito da excitação de espírito me que me achava, ou de qualquer outra perturbação, senti-me fora do tempo e do espaço, e meus olhos só percebiam a doce visão. Era ela, Arabela. Como estava bela! A música lasciva se tornou distante, e as vozes dos homens chegavam a mim, lentas e desconexas. Em meio dos corpos exaustos, a incorpórea e casta Arabela. Parecia que eu me comunicava com Deus e que um anjo descera sobre mim. Meu corpo se desfazia em harmonias, e alegre música de pássaros se produzira no ar. Não me lembra quanto tempo durou o encantamento e só vagamente me recordo de que, em um momento impossível de localizar, no tempo e no espaço, a mão me fugiu. Também tenho uma vaga idéia de que alguém me apanhou do chão, pisado e machucado, e me pôs num canapé onde, já sol alto, fui dar acordo de mim.
O mito donzela Arabela tem enchido minha vida. Esse absurdo romantismo de Vila Caraíbas tem uma força que supera as zombarias do Belmiro sofisticado e faz crescer, desmesuradamente, em mim, um Belmiro patético e obscuro. Mas viviam os mitos, que são o pão dos homens.
Nesta noite de quarta-feira de cinzas, chuvosa e reflexiva, bem noto que vou entrando numa fase da vida em que o espírito abre mão de suas conquistas, e o homem procura a infância, numa comovente pesquisa das remotas origens do ser.
Há muito que ando em estado de entrega. Entregar-se a gente as puras e melhores emoções, renunciar aos rumos da inteligência e viver simplesmente pela sensibilidade — descendo de novo cautelosamente, a margem do caminho, o véu que cobre a face real das coisas e que foi, aqui e ali, descerrado por mão imprudente — parece-me a única estrada possível. Onde houver claridade, converta-se em fraca luz de crepúsculo, para que as coisas se tornem indefinidas e possamos gerar nossos fantasmas. Seria uma fórmula para nos conciliarmos com o mundo.
Cyro Versiani dos Anjos
Texto extraído do livro “O amanuense Belmiro”, Editora José Olympio – Rio
de Janeiro, 1971, pág. 19.
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