A abertura da Olimpíada foi mesmo
algo grandioso, sob muitos aspectos. O bom gosto e a sensibilidade do grupo que
concebeu e dirigiu o espetáculo são dignos de eterno registro, sobretudo no que
diz respeito à adoção de temas brasileiros e de obras de nobres artistas
brasileiros de diversos períodos e matizes.
Como já afirmei um sem-número de
vezes neste espaço, os textos dialogam, as obras de arte dialogam, e esse
diálogo forma a intertextualidade: para que se compreenda uma obra, é
necessário que se conheçam e compreendam as obras com as quais aquela obra
dialoga.
Um caso concreto: quando começaram a
emergir vários edifícios, que "subiam" e "desciam"
concomitantemente ao surgimento de pessoas, que andavam sobre esses edifícios e
pulavam de um a outro, ouviram-se acordes de "Construção", de Chico
Buarque, apresentada sem letra.
Na gravação de Chico, de 1971, o
belo arranjo de "Construção" foi feito por Rogério Duprat
(1932-2006). Esse arranjo dialoga com a melodia e a letra da canção, criando
sons que lembram e intensificam os ruídos que se ouvem numa grande cidade e
acentuando o destino trágico do operário.
É imperativo destacar o caráter
metalinguístico do espetáculo, no qual uma linguagem se valeu de outra para a
sua descrição e assim sucessivamente. O subir e descer dos prédios com as
pessoas a acompanhar esse subir e descer e a pular de um prédio a outro foi
"explicado" pela canção "Construção", cuja letra, por sua
vez, "explica" o que envolve a construção de um edifício e de um
texto (o próprio texto) e, sobretudo, o que vive (e não vive e sonha) quem
constrói esse edifício.
Construída com versos alexandrinos
(de doze sílabas poéticas) e esdrúxulos (que terminam numa proparoxítona), a
letra de "Construção" forma um grande mosaico, já que seus versos
alternam o "esqueleto" e a palavra final, numa combinação que gera
"um desenho mágico".
E o grande Drummond, com o mais que
antológico e atualíssimo poema "A Flor e a Náusea", que, por sinal,
já citei mais de uma vez neste espaço e que foi dito magnificamente pela grande
Fernanda Montenegro na abertura dos Jogos Olímpicos? "O tempo é ainda de
fezes, maus poemas, alucinações e espera", dizem os versos de Drummond.
Aí vem a inevitável pergunta: qual é
a parcela de brasileiros (letrados ou iletrados, da nossa Bélgica ou da nossa
Índia, como bem lembrou Juca Kfouri) capazes de entender todas essas
referências, que integram a realidade de todos nós? O que faz a escola em
relação a isso?
O que fazemos com toda essa beleza,
caro leitor? Que lições tiramos desse e de outros mágicos desfiles de obras e
fatos do nosso lado criativo, talentoso, brilhante? Quanto disso chega ao nosso
dia a dia? O que dizer do contraste que há entre a nobreza de Paulinho da Viola
a entoar sublimemente o nosso hino e a boçalidade nossa de cada dia?
Que desperdício de talento, Deus
meu! Como diz Caetano (outro que desfilou sua nobre arte na sexta) em
"Vamo Cumê", "Quem vai... e fazer desta vergonha uma
nação?".
Em tempo: um puxão de orelhas nos
criadores do espetáculo, por não incluírem a imagem de Vinicius de Moraes
durante "Garota de Ipanema", da qual é coautor. Imperdoável.
Não vejo salvação fora da educação e
da arte, da nobre arte, que, por sinal, temos de sobra. Que encontremos o
caminho para que a nossa nobre arte nos salve! É isso.
Pasquale Cipro Neto
(http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/colunas&blogs/pasquale/2016/08/1801507-a-arte-que-poderia-nos-salvar.shtml.
Acesso em: 11/08/2016)
Nenhum comentário:
Postar um comentário