Eu a escrevi faz muito tempo, uma história de amor. Quem a leu, eu sei, não se esqueceu.
Por razão do dito pela Adélia: "o que a memória ama fica eterno”.
História de amor não inventada, acontecida, tão comovente quanto Romeu e
Julieta, Abelardo e Heloísa. O que fiz foi só registrar o acontecido.
Preciso contá-la de novo, para benefício daqueles que não a leram
pela primeira vez, e a fim de acrescentar um final novo, inesperado,
acontecido depois.
A testemunha que me relatou o sucedido…, atrasou-se para um
compromisso em minha casa, chegou três horas depois, explicando que
havia ido ao velório de um tio de 81 anos de idade que morrera de amor.
Parece que seu velho corpo não suportara a intensidade da felicidade
tardia, e os seus músculos não deram conta do jovem que, repentinamente,
deles se apossara.
O amor surgira no tempo em que ele é mais puro: a adolescência. Mas
naquele tempo havia uma outra AIDS, chamada tuberculose, que se
comprazia em atacar as pessoas bonitas, os artistas e os apaixonados –
esses eram os grupos de risco. Pois ela, a tuberculose, invejosa da
felicidade dos dois, alojou-se nos pulmões do moço, que teve que ir em
busca de ar puro, no alto das montanhas… Quem ia para tais lugares
despedia-se com um “adeus”, um olhar de “nunca mais”. Na melhor das
hipóteses, muitos anos iriam se passar antes do reencontro.
Imagino o sofrimento da jovem dividida: o corpo naquela casa, a alma
por longe terra!! Na vida daquela menina, que surda, perdia a
guerra…(Cecília Meirelles).
Valeram mais os prudentes conselhos da mãe e do pai: não trocar o
certo pelo duvidoso. Vale mais um negociante vivo do que um tuberculoso
morto. E aconteceu com ela o que aconteceu com a Firmina Dazza , que de
longe e às escondidas namorava o Fiorentino Ariza, na estória de Gabriel
Garcia Marques – Amor nos tempos da cólera – , que foi obrigada pelo
pai a casar com o doutor Urbino: não se troca um médico por um
escriturário. Casou-se e com ele, ficou até que, depois de 51 anos, veio
a libertação…
Ela casou. Ele casou. Nunca mais se viram. Quando ela tinha 76 anos
(ele tinha 79), ela ficou viúva. E ficou sabendo que ele estava vivo. A
curiosidade e a saudade foram fortes demais. Foi procurá-lo.
Encontraram-se. E de repente eram namorados adolescentes de novo.
Resolveram casar-se. Os filhos protestaram. Eles, os filhos, não
suportam a idéia de que os velhos também têm sentimentos. Especialmente
os pais. Pais velhos devem ser fofos, devem saber contar histórias,
devem tomar conta dos netos.
Mas velho apaixonado é coisa ridícula. Não combina… Os filhos sempre decidem contra o amor dos pais.
Mas, na nossa estória, os dois velhos deram uma banana para os filhos
e foram viver juntos. Viveram uns anos de amor maravilhosos, e ele até
começou a escrever poesia e voltou a tocar o violino que ficara por mais
de 50 anos sobre um guarda-roupa, porque a esposa não gostava de música
de violino. Confessou ao sobrinho: “Se Deus me der dois anos de vida
com esta mulher, minha vida terá valido a pena…” Bem que Deus quis. Mas o
corpo não deixou. Morreu de amor, como temia o Vinícius.
Achei a estória tão bonita que transformei numa crônica a que dei um
título inspirado nas Sagradas Escrituras: “… e os velhos se apaixonarão
de novo”. Passaram-se semanas. Eram dez horas da noite. Eu estava
trabalhando no meu escritório. O telefone tocou. Voz aveludada de mulher
do outro lado.
– É o professor Rubem Alves ?
-Sim, respondi secamente. Eu sempre sou seco ao telefone.
– Quero agradecer a belíssima crônica que o senhor escreveu com o
título “E os velhos se apaixonarão de novo”. O senhor já deve ter
adivinhado quem está falando…
– Não – respondi – por vezes eu sou meio burro. Aí ela se revelou: – Sou a viúva.
Foi o início de uma deliciosa conversa de mais de quarenta minutos,
interurbano, em que ela contou detalhes que eu desconhecia. O medo que
ela teve quando ele resolveu mandar consertar o violino! Ela temia que
os dedos dele já estivessem duros demais…
Ah! Que metáfora fascinante para um psicanalista sensível. Sim, sim!
Nem os violinos ficam velhos demais, nem os dedos ficam impotentes para
produzir música ! E aí foi contando, contando, revivendo, sorrindo,
chorando tanta alegria, tanta saudade, uma eternidade num grão de areia…
Ao terminar, ela fez esta observação maravilhosa:
– Pois é, professor. Na idade da gente, a gente não mexe muito com sexo. A gente vivia de TERNURA E AMOR.
Aqui termina a lição do Evangelho.
Rubem Alves
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