Quando começo a escrever deixo de ser dono de mim mesmo. Fico à mercê
de ideias que nunca pensei. Elas aparecem sem que eu as tenha chamado e
me dizem: “Escreva!“ Não tenho outra alternativa. Obedeço. Cummings,
referindo-se a um livro seu, ao invés de dizer “quando eu escrevi esse
livro“, disse “quando esse livro se escreveu.“ Não foi ele… O livro já
estava escrito antes, em algum lugar. Ele só fez obedecer as ordens que o
livro lhe deu. Nikos Kazantzakis, autor de Zorba, o Grego, confessou
que as letras do alfabeto o aterrorizavam. E isso porque, uma vez
soltas, elas se recusavam a obedecer as suas ordens. “As letras são
demônios astutos e desavergonhados — e perigosos! Você abre o tinteiro e
as solta: elas correm — e você não mais conseguirá trazê-las de novo
para seu controle! Elas ficam vivas, juntam-se, separam-se, ignoram suas
ordens, arranjam-se a seu bel-prazer no papel — pretas, com rabos e
chifres. Você grita e implora: tudo em vão. Elas fazem o que querem…“
Era meu costume tentar colocar ordem na casa: planejar, determinar de
forma lógica e metódica os temas sobre que eu iria escrever. Foi assim
que resolvi escrever um livro em que colocaria em ordem e diria tudo o
que eu havia pensado sobre a educação. O título seria: A erótica da
educação e a educação da erótica. Por cinco anos lutei. As idéias não me
faltavam. Mas as palavras se recusaram a me obedecer. O dito livro não
queria ser escrito. Wittgenstein passou por experiência semelhante. Por
muitos anos ajuntou ideias. Aí, tentou ordená-las sob a forma de um
texto filosófico. Eis o que aconteceu, em suas próprias palavras:
“Depois de várias tentativas mal sucedidas de fundir meus resultados
numa peça única, percebi que eu nunca haveria de ser bem sucedido. O
melhor que eu poderia escrever seria nada mais que anotações
filosóficas; os meus pensamentos ficavam logo paralisados se eu tentava
forçá-los numa única direção contra a sua inclinação natural.“
Pois eu não tinha intenção alguma de escrever sobre o dia dos pais.
Mas, de repente, passando os olhos num livro que uma amiga me enviou,
encontrei a seguinte afirmação: “Tomar uma decisão de ter um filho é
algo que irá mudar sua vida inteira de forma inexorável. Dali para
frente, para sempre, o seu coração caminhará por caminhos fora do seu
corpo.“
Aí as ideias puseram a se movimentar por conta própria. Pensei na
minha condição de pai. É verdade: pai é alguém que, por causa de um
filho, tem sua vida inteira mudada de forma inexorável. Isso não é
verdadeiro do pai biológico. É fácil demais ser pai biológico. Pai
biológico não precisa ter alma. Um pai biológico se faz num momento. Mas
há um pai que é um ser da eternidade: aquele cujo coração caminha por
caminhos fora do seu corpo. Pulsa, secretamente, no corpo do seu filho
(muito embora o filho não saiba disto).
Lembrei-me dos meus sentimentos antigos de pai, diante dos meus
filhos adormecidos. Veio-me à mente a imagem de um “ninho“. Bachelard, o
pensador mais sensível que conheço, amava os ninhos e escreveu sobre
eles. Imaginou que, “para o pássaro, o ninho é indiscutivelmente uma
cálida e doce morada. É uma casa de vida: continua a envolver o pássaro
que sai do ovo. Para este, o ninho é uma penugem externa antes que a
pele nua encontre sua penugem corporal.“ Era isso que eu queria ser. Eu
queria ser ninho para os meus filhos pequenos. Queria que meu corpo
fosse um ninho-penugem que os protegesse, um ninho que balança
mansamente no galho de uma árvore ao ritmo de uma canção de ninar…
Que felicidade enche o coração de um pai quando o filho que ele tem
no colo se abandona e adormece! Adormecida, a criança está dizendo:
“tudo está bem; não é preciso ter medo“. Deitada adormecida nos
braços-ninho do seu pai ela aprende que o universo é um ninho! Não
importa que não seja! Não importa que os ninhos estejam todos destinados
ao abandono e ao esquecimento! A alma não se alimenta de verdades. Ela
se alimenta de fantasias. O ninho é uma fantasia eterna. Jung deveria
tê-lo incluído entre os seus arquétipos! “O ninho leva-nos de volta à
infância, a uma infância!“ (Bachelard). Aquela cena, a criança
adormecida nos braços do pai, nos reconduz à cena de uma criancinha
adormecida na estrebaria de Belém! Tudo é paz! Desejaríamos que ela, a
cena, não terminasse nunca! Que fosse eterna!
É impossível calcular a importância desses momentos efêmeros na vida de
uma criança. É impossível calcular a importância desses momentos
efêmeros na vida de um pai. O efêmero e o eterno abraçados num único
momento! “Conter o infinito na palma da sua mão e a eternidade em uma
hora“: o pai que tem o seu filho adormecido nos seus braços é um poeta!
Essas palavras do poeta William Blake bem que poderiam ser suas. Um
homem que guarda memórias de ninho na sua alma tem de ser um homem bom.
Uma criança que guarda memórias de um ninho em sua alma tem de ser
calma!
Mas logo o pequeno pássaro começará a ensaiar seus vôos incertos.
Agora não serão mais os braços do pai, arredondados num abraço, que irão
definir o espaço do ninho. Os braços do pai terão de se abrir para que o
ninho fique maior. E serão os olhos do pai, no espaço que seus braços
já não podem conter, que irão marcar os limites do ninho. A criança se
sente segura se, de longe, ela vê que os olhos do seu pai a protegem.
Olhos também são colos. Olhos também são ninhos. “Não tenha medo. Estou
aqui! Estou vendo você“: é isso o que eles dizem, os olhos do pai.
O que a criança deseja não é liberdade. O que ela deseja é
excursionar, explorar o espaço desconhecido – desde que seja fácil
voltar. Tela de Van Gogh. É um jardim. No lado direito do jardim, mãe e
criança que acabam de chegar. Ao lado esquerdo o pai, jardineiro,
agachado com os braços estendidos na direção do filho. É preciso que o
pai esconda o seu tamanho, que ele esteja agachado para que seus olhos e
os olhos do seu filho se contemplem no mesmo nível. A cena é como um
acorde suspenso, que pede uma resolução. É certo que o filho largará a
mão da mãe e virá correndo para o pai… E a fantasia pinta a cena final
de felicidade que o pintor não pode pintar: o pai pegando o filho no
colo, os dois rindo de felicidade…
O tempo passa. Os pássaros tímidos aprendem a voar sem medo. Já não
necessitam do olhar tranquilizador do pai. É a adolescência. Ser pai de
um adolescente nada tem a ver com ser pai de uma criança. Pobre do pai
que continua a estender os braços para o filho adolescente, como na tela
de Van Gogh! Seus braços ficarão vazios. Como se envergonharia um
adolescente se seu pai fizesse isso, na presença dos seus companheiros! É
o horror de que os pássaros companheiros de vôo o vejam como um pássaro
que gosta de ninho! Adolescente não quer ninho. Adolescente quer asas.
Os ninhos, agora, só servem como pontos de partida para vôos em todas as
direções. Liberdade, voar, voar… A volta ao ninho é o momento que não
se deseja. Porque a vida não está no ninho, está no vôo. Os ninhos se
transformam em gaiolas. Se eles procuram os olhos dos pais não é para se
certificar de que estão sendo vistos mas para se certificar de que não
estão sendo vistos! Aos pais só resta contemplar, impotentes, o vôo dos
filhos, sabendo que eles mesmos não podem ir. Nos espaços por onde seus
filhos voam os ninhos são proibidos. Mas eles terão de voltar ao ninho,
mesmo contra a vontade. E o pai se tranquiliza e pode finalmente dormir
ao ouvir, de madrugada, o barulho da chave na porta: “Ele voltou…“
Mas chega o momento quando os filhos partem para não mais voltar.
Através da minha janela vejo um ninho que rolinhas construíram nas
folhas de uma palmeira. A pombinha está chocando seus ovos. Vejo sua
cabecinha aparecendo fora do ninho. Mas numa outra folha da mesma
palmeira há um outro ninho, abandonado. Esse é o destino dos ninhos, de
todos os ninhos: o abandono.
Gibran Khalil Gibran escreveu, no seu livro O Profeta, um texto
dedicado aos filhos. Não sei de cor suas precisas palavras. Mas vou
tentar reconstrui-las. É aos pais que ele se dirige. “Vossos filhos não
são vossos filhos. Vossos filhos são flechas. Vós sois o arco que
dispara a flecha. Disparadas as flechas elas voam para longe do arco. E o
arco fica só.“
Esse é o destino dos pais: a solidão. Não é solidão de abandono. E
nem a solidão de ficar sozinho. É a solidão de ninho que não é mais
ninho. E está certo. Os ninhos deixam de ser ninhos porque outros ninhos
vão ser construídos. Os filhos partem para construir seus próprios
ninhos e é a esses ninhos que eles deverão retornar.
Assim é na natureza. Assim é com os bichos. Deveria ser conosco
também. Mas não é. Quem é pai tem o coração fora de lugar, coração que
caminha, para sempre, por caminhos fora do seu próprio corpo. Caminha,
clandestino, no corpo do filho. Dito pela Adélia: “Pior inferno é ver um
filho sofrer sem poder ficar no lugar dele.“ Dito pelo Vinícius,
escrevendo ao filho: “Eu, muitas noites, me debrucei sobre o teu berço e
verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas
lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha
carne as farpas feitas para a tua…“
Sei que é inevitável e bom que os filhos deixem de ser crianças e
abandonem a proteção do ninho. Eu mesmo sempre os empurrei para fora.
Sei que é inevitável que eles voem em todas as direções como andorinhas adoidadas.
Sei que é inevitável que eles construam seus próprios ninhos e eu fique como o ninho abandonado no alto da palmeira…
Mas, o que eu queria, mesmo, era poder fazê-los de novo dormir no meu colo…
Rubem Alves
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