sábado, 2 de julho de 2016

O Natal, o Carnaval e o São João

“Existe o tempo de apertar o pavio da vela”, diz o Eclesiastes, “e o tempo de acender.” Não, o Eclesiastes não diz especificamente isto, mas a verdade é que os tempos se sucedem em função de uma lei causal, não em função de nossa conveniência. O regimento interno do mundo tem um artigo dizendo que cada coisa na vida vem, ou deveria idealmente vir, o que dá no mesmo, no momento certo para a gente desfrutar.

Em vista disto, proponho meu axioma número um: “O tempo certo para o Natal é a nossa infância”. Como diria Sinhozinho Malta, chacoalhando a joalharia: “Tô certo ou tô errado?”. Na infância, até o mais salafrário dos futuros raparigueiros é a pureza em pessoa. Ele acredita que o algodão é neve, e acreditaria que crediário é dinheiro, se alguém se dispusesse a lhe explicar. Acredita na existência de Papai Noel, e se alguém lhe mostrasse o quanto é improvável esse “plot” envolvendo Lapônia, renas, trenó, tempo hábil de deslocamento e distribuição logística de cargas, ele retrucaria com o mais invulnerável dos argumentos, um fato: a caixa com o sonhado PlayStation reluzindo ao pé do pinheirinho piscante.

A infância é o tempo do Natal, de rasgar sofregamente o papel estampado, quase arrebentar a tampa de papelão que se ergue como Derradeiro Obstáculo à Visão Beatífica... E o que sai lá de dentro? Uma divindade refulgente? Não, apesar do tributo pago ao bezerro de ouro: um sonho impossível tornado realidade. O sonho de fazer teletransportar, mediante anseios, meios-pedidos, sugestões, melancolias inexplicáveis, dedos hesitantemente correndo sobre uma página de revista e indicando um produto ao olho presciente e calculista de um adulto, enfim: teletransportar por meios psico-econômico-científicos desconhecidos (mas certamente eficazes) um objeto que estava numa vitrine lá no centro da cidade para uma caixa de papelão aqui no meu colo, e não é por outro motivo que ainda hoje vou às lágrimas quando ouço Luís Bordón – A Harpa e a Cristandade.

Corramos um véu sobre as chantagens, as alianças espúrias, as delações premiadas, os subornos imperceptíveis, as guinadas morais, as vergonhas-alheias, os inesperados triunfos, as imprevistas responsabilidades, tudo o que a infância nos obriga a executar para virar gente.  O fato é que, quando abrimos os olhos, ela se foi de repente. Negociamos tanto para sair dela, e agora a porta dela se fechou e é só para a frente que podemos saltar.

E vamos parar na famosa juventude.  Ponho de novo a coroa-de-louros de profeta e anuncio o axioma número dois: “O tempo certo para o Carnaval é a juventude”. Pense numa festa e num período pra darem certo que só caçuá em bêsta!  A juventude é uma doença infantil da vida humana. A gente pensa que de agora em diante tudo vai ser gratificação dionisíaca, com breves intervalos de poesia apolínea para acalmar os batimentos cardíacos. E o Carnaval nos serve como uma luva de carne.

Não há melhor época para entender a essência do Carnaval do que a febre hormonal dos vinte e tantos anos. Diante daquela coorte de deusas eufóricas, de odaliscas lantejouladas, de huris de vinho em punho, de hetaíras ressumantes, o sujeito olha para a câmera ou a quarta-parede imaginária, diz: “se eu gritar por socorro não me salve”, e pula. É Carnaval; todos pulam. Todos pularam. Eu também pulei.

Carnaval tem uma coisa interessante que é o desabrochar de carismas nas circunstâncias em que aparentemente todos se nivelam em torno do canto do bode. E eu já fui testemunha, protagonista e coadjuvante em mil cenas onde o carisma salvador brotou do ator menos provável, do papel menos favorável, do arranjo menos ad-hoc. Vi noitadas de farra em que o talento que mais brilhou foi o talento inconteste celebrado por todos, e vi noitadas em que um talento obscuro se ergueu e o eclipsou a ponto de fazê-lo bater palmas com os demais e louvar a divindade da Lua, a deusa que muda todo mês, mais esperta e mais safa do que o Sol, que só muda de luz quando Ela atravessa o seu caminho.

Não posso me alongar sobre o Carnaval sem reviver aquelas horas que eram como correntinhas-de-clipes, intermináveis, reiterativas, sempre parecidas e sempre diferentes, variações barrocas em torno de uma tema gozoso que nos aprisionava em chuva, suor e cerveja. Quem brincou um Carnaval já foi jovem, mesmo que tenha estreado nesse ramo com mais de setenta. Quem quiser que reclame. O fato é que quem estava acendendo cigarro com fogo e bebendo álcool éramos nós, mas curiosamente, historicamente, estatisticamente, quando alguém tocava fogo no mundo não era um de nós, em geral, era um deles.

Muito bem. Chega de acondicionar com circunlóquios o Inefável. E para a velhice, a madureza (dirá o leitor), qual a festa que mais se enquadra? E eu vos direi: o São João. São João não é necessariamente uma festa de velhos, mas é pra quem já deu voltas no circuito e sabe o formato da pista. O formato envolve plantio, colheita, consumo e plantio. O formato envolve gozo, sofrimento, morte e ressurreição. O formato envolve, neste caso, específico fogo e inverno. O Natal é uma festa voltada para o Futuro (“tudo sempre vai ser bonito assim, acredite, é para sempre”), o Carnaval para o Presente (“nada será como antes amanhã”), mas o São João é uma festa voltada não propriamente para o Passado, mas para o Passar.

A lenha, o fogo, a cinza. O fogo, a cinza, a terra. A cinza, a terra, a lenha. A terra, a lenha, o fogo. A lenha, o fogo, a cinza.

Isto é tudo que conseguimos saber, e uma pequena parte do que deveríamos.


Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo

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