Você acredita em destino? Sei,
parece uma pergunta estranha. Principalmente num mundo como o nosso, cozido na
crença e no projeto de domínio de tudo pelo indivíduo que escolhe as coisas com
a força de quem traz o Visa entre os dedos.
Outro dia, conversando com amigas,
perguntei quem acreditava em destino. Apenas aquela que já viveu mais,
respondeu "sim". As demais, mais jovens, responderam "não".
Pareceu-me que ali pesava a maior sabedoria daquela que viveu mais (e trata-se
de uma mulher muito bem-sucedida, para que nenhum desavisado pense que era uma
"coitada").
Sim, sou um falso contemporâneo:
duvido da capacidade humana de controlar sua vida. Cada vez mais. Sendo eu um
contemporâneo, minha suspeita de que exista destino deve ser alguma forma de
patologia cognitiva. Prefiro minha patologia ao invés do delírio dos meus
contemporâneos.
Nesse sentido, ponho sob suspeita a
máxima do mundo burguês moderno: sou dono do meu destino, basta que eu calcule,
seja competente e monte estratégias. Nos meus piores momentos, suspeito que
essa crença seja mais um dos males da caixa de Pandora, que Zeus deu a ela para
nos castigar contra nosso conhecimento do fogo (símbolo da técnica) e seus
delírios de poder.
Lembremos que o pior dos males
naquela caixa era a esperança. Ter esperança é um engano, porque não há
esperanças, pensa o grego antigo. Entendo que a crença na liberdade individual
contra o destino seja um pouco como a esperança de Pandora: mais um engano,
entre tantos outros, que nos faz acreditar em nossa infinita capacidade de
dominar as coisas.
De onde viria essa certeza de que
somos livres e de que não existe um destino "traçado" sobre nossas
cabeças?
Quando olhamos para o mundo antigo,
é comum encontrarmos a crença nalguma forma de destino. Esse destino seria
traçado por forças divinas. No mundo grego, o famoso oráculo de Delfos,
dedicado ao deus Apolo, aquele conhecido por dizer "Conhece-te a ti
mesmo", citado por Sócrates, tinha um "complemento", que era:
"Saibas que tu és mortal".
Estava aí o destino: o homem é
sempre menos do que um deus porque ele é mortal e, por isso mesmo, tem como
destino a perda de si mesmo. Entendo que a perda de si mesmo vá além da ideia
concreta da morte. A perda de si mesmo se dá de diversas formas. Enquanto escrevo
para você, me perco, me traio.
O engano contemporâneo com relação a
inexistência do destino estaria não apenas no fato que continuamos mortais, mas
também no fato que continuamos a perder a nós mesmos das mais variadas formas:
viver é perder-se (nas paixões, nos desejos, nos fracassos, nos sucessos, nas
guerras), e se você tenta evitar isso, você se perde mais rápido ainda e de
forma definitiva e miserável. É aí que se encontra minha suspeita, além da
mortalidade da qual fala Delfos, de que exista algo como um destino invadindo
nossas vidas. Mas, sendo a modernidade uma "teenager" encantada com
seu sucesso, acabamos por interpretar os palhaços da liberdade.
Pensando a partir de um materialismo
social, a ideia de destino parecia mais comum quando os homens e as mulheres
tinham poucas opções na vida, fosse por conta de pouca técnica, pouca
longevidade, pouca liberdade individual, pouco conhecimento, pouca democracia,
poucos shopping centers. Este último principalmente: a fé na liberdade moderna
é um misto de fé na técnica (o fogo de Prometeu) e no poder do Mastercard.
Por isso, a fé na liberdade
individual me parece fruto do avanço da sociedade de mercado e suas ferramentas
de sucesso, descritas acima. Se você quiser ver esta liberdade caminhando por
ai, vá ao Iguatemi. A riqueza fez de nós descrentes no destino, porque pensamos
poder "comprá-lo".
Não duvido dessa premissa: mais
dinheiro, mais técnica, mais sensação de liberdade. Mas suspeito que esta
crença seja parte da esperança de Pandora. No fundo da caixa de Pandora tinha
mais um mal escondido: a crença na liberdade do consumidor como liberdade
contra o destino. O destino moderno é enganar-se com o próprio poder de
controlar das coisas.
Luiz Felipe Pondé
(http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/colunaseblogs/luizfelipeponde/2016/07/1792708-perder-se.shtml.
Acesso em: 19 julho 2016)
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