“Sobre a guerra não vou conseguir
escrever mais. Disso tenho a certeza”, atirou Svetlana Aleksiévitch do
palco da Tenda dos Autores da Festa Literária Internacional de Paraty
(FLIP). Em resposta, ela ouviu o silêncio na plateia de 850 lugares que
na noite de sábado abarrotava os assentos. Lá fora, uma multidão que não
conseguiu bilhete juntou-se, sentada ou de pé, em frente ao telão
gigante onde é transmitido gratuitamente o que se passa no palco
principal: mais de 1800 pessoas, segundo números da organização. Ao
mesmo tempo, decorria à porta da tenda uma manifestação contra a
ausência de autores negros na FLIP e contra o presidente interino Michel
Temer. Momentos antes, também um grupo de mulheres se passeara na sala,
em silêncio, segurando lenços brancos onde se lia “Ana Cristina Cesar
era gay”, em protesto contra a abordagem da FLIP à autora homenageada desta edição.
Em russo, com a sua voz pausada, o inconfundível cabelo ruivo, e enfiada num fato salmão, a Prêmio Nobel da Literatura de 2015 continuou a explicar, numa conversa conduzida pelo jornalista e editor da revista Serrote,
do Instituto Moreira Salles, Paulo Roberto Pires, que “os homens não
gostam muito de ter mulheres na guerra, principalmente mulheres que
escrevem”.
A autora de A Guerra Não Tem Rosto de Mulher
(Companhia das Letras) recordou que estava na guerra do Afeganistão a
fazer o seu trabalho de jornalista, acompanhada por um coronel bem
cínico, quando lhe mostraram uma arma que lhe pareceu muito bonita: “É
horrível dizer isto, mas era mesmo uma arma bonita, moderna, via-se que
quem a construiu passou bastante tempo a pensar na melhor maneira de
matar outro homem.” O coronel olhou para ela de cima para baixo e
respondeu-lhe que sempre que a dita arma era disparada era preciso
depois raspar do asfalto, com uma colher, o corpo abatido.
Algum tempo mais tarde, num dia em que
faziam mais de 40 graus, o mesmo coronel levou-a a um local onde a arma
tinha sido utilizada para matar os seus soldados, dos quais tentavam
recuperar os corpos para enviar alguma coisa às famílias. “Eu tenho
cultura russa, acredito que temos de ser verdadeiros até ao fim. Mas não
sou uma super-mulher, sou um ser humano normal. Quando lá cheguei com
aquele calor e vi aqueles pedacinhos de corpos espalhados pelo chão,
desmaiei. Mas ao mesmo tempo tinha de voltar para casa e escrever aquilo
tudo. E depois alguém vai perguntar: como é que sobreviveu no
Afeganistão?”.
Pausa para respirar fundo antes de
continuar: “É muito difícil responder. Não sei como sobrevivi a essas
experiências, sofri muito, não consigo sequer visitar lares de crianças
abandonadas. Antigamente eu ia para os hospitais onde havia homens sem
braços, sem pernas, hoje em dia não consigo. Mas sei que o me salvava, o
que me salvou: é que eu amo a vida. Temos a que nos apegar.”
O amor, “a única saída”
A Nobel bielorrussa, agora com 68 anos,
sabe que nunca mais voltará a esses lugares. “Não fui à Tchechênia
porque não podia ver mais um ser humano assassinado por outro ser humano
que não gostou do que ele pensava, não conseguia sequer imaginar ver um
corpo morto. Tudo o que quis dizer a respeito das guerras já o disse
nos meus livros, e como autoproteção estou à procura de novas ideias.”
O novo livro que está a escrever,
revelou, tem por tema o amor. “Mas também há uma certa guerra nisto, não
posso dizer que esse assunto é muito fácil de tratar.”
Apesar de ter no seu currículo livros como Vozes de Tchernóbil,
Svetlana diz que não coleciona tragédias. “Na verdade há muitas
tragédias, mas ao mesmo tempo há crianças, flores, amor, pôr-do-sol… Na
vida, há momentos em que se consegue ganhar força e continuar a
enfrentar as dificuldades. Acho que tenho de passar, naquilo que faço,
essa beleza. Os meus livros, mesmo convivendo com a tragédia, falam de
amor, que é a única saída para nós.”
Além de Tchernóbil, Paulo Roberto Pires
lembrou também a tragédia de Mariana, no Brasil, onde a ruptura de duas
barragens operadas pela empresa mineira Samarco provocou um desastre
ambiental. Réplica de Svetlana: “A humanidade ocupou o lugar errado
dentro da natureza. É muita ingenuidade usar a força contra ela. Os
índios no Brasil conhecem melhor a natureza do que nós, hoje em dia, com
todas as tecnologias. O mundo precisa de uma nova filosofia de vida, se
não esse progresso vai levar à nossa autodestruição.” E ainda: “Não
acredito que o homem venha a ser salvo pelo homem racional, mas por um
homem que venha a ter uma visão ampla e não veja só o progresso. Na
nossa civilização só temos o homem-consumo. Daqui a alguns séculos, vão
dizer o quanto éramos primitivos.”
Do publico.pt
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