Intolerância e Democracia religiosas no tempo das novas mistificações
Deus sempre foi usado por pessoas e instituições como uma espécie de
verdade que tudo justifica. Barbaridades e maldades foram feitas em nome
de Deus.
Violências físicas e simbólicas são até hoje realizadas pelas mais diversas pessoas e religiões em nome de Deus.
Podemos citar exemplos históricos envolvendo intolerância religiosa,
algo que se dá sempre em nome de Deus. Judeus, cristãos e muçulmanos de
tempos em tempos massacram uns aos outros tendo como base a ideia de que
o Deus único no qual creem está mais para o seu lado do que do lado dos
outros. A caça às bruxas medieval, a perseguição a ateus e apostatas,
não difere muito da contemporânea perseguição às mulheres e à homofobia
das quais algumas Igrejas – instituições reconhecidas por sua misoginia –
ainda estão cheias. Muitos dos crimes motivados pelo preconceito e pelo
ódio tem como base ideias religiosas e obscurantistas sobre supostas
verdades acerca da natureza humana e da natureza divina. Deus desde
sempre é um tema que, como política e futebol, tem o poder de reunir
fanáticos e separar cidadãos. Deus pode ser um perigo.
Para evitar guerras e violências é que se defende um Estado laico, um
Estado sem religião oficial e que sustente a democracia religiosa, ou
seja, o direito de cada um exercer sua crença respeitando a do outro.
Democracia religiosa é algo que só um Deus amoroso pode desejar. Mas nem
todo mundo usa um Deus bacana, um Deus do bem, para fazer religião,
muita gente quando faz religião nem lembra que um bom Deus possa
existir.
Assim é que se usa Deus – que nem imagina o que pode estar sendo
feito em seu nome. Podemos dizer que, em nossa época, “Deus” está
baratinho, pode ser vendido em qualquer esquina, basta alguém resolver
explorá-lo como se explora uma criança na rua ou uma mulher sexualmente.
A cafetinagem de Deus sempre foi um bom negócio.
É assim que, no Brasil, as igrejas crescem como nunca. O poder
religioso exercido pelas igrejas é poder como outro qualquer: violência,
força, dominação, controle para sua própria manutenção. O poder
religioso não vem sozinho, ele implica o poder do dinheiro com o qual as
três grandes religiões sempre estiveram envolvidas. Riqueza e pobreza
defendida por uns e outros em tempos e contextos diversos serve ao poder
econômico de poucos, como sempre. Qualquer igreja, de um modo geral,
nada mais faz do que administrar a fé no contexto do capitalismo. A fé é
usada como Deus é usado. Capitalismo é religião mesmo quando nenhum
outro deus além do capital está em jogo, mas sempre que o capital se
confunde com Deus, quando Deus é o próprio capital, então esse poder é
levado a uma potência indescritível.
Diz-me o que fazes com teu Deus e dir-te-ei quem és
Deus é usado e constantemente abusado. Deus pode ser uma ideia boa
quando se faz um bom uso dela. Mas quando se faz um mau uso, essa ideia
causa muitos problemas. Justamente porque Deus é uma ideia incrível e
todo mundo quer usar uma ideia incrível. A ideia de uma Deus único,
patriarcal, soberano, que tudo sabe, que tudo escolhe, que tudo decide,
combina muito com a sociedade humana. Todo mundo quer ficar do seu lado e
ter sua proteção.
Porém, nesse contexto, Deus é instrumentalizado pelas religiões que o
usam como uma espécie de poder absoluto. E quem não obedece ao padre ou
pastor, que defende algo em nome de Deus, pode se dar muito mal,
acusado de herege ou banido da comunidade em que a questão religiosa
está dada como fundamental para o convívio e a participação. É como ser
vegetariano em um churrasco.
As liberdades democráticas se exercem de muitos modos, e a religião
necessariamente é uma delas. Isso nos faz pensar que a intolerância
religiosa é um mecanismo de controle social. O fanatismo religioso,
nesse sentido, é sempre muito útil. Muito fácil submeter os outros aos
desejos e à necessidade autoritária que o fanático faz sua. Muito fácil
usar o “meu Deus” como desculpa para todo tipo de violência simbólica ou
física.
No Brasil o fundamentalismo religioso está em voga. Se novas igrejas
de todo tipo surgem em cada esquina, é porque isso é permitido no
contexto do Estado laico. Ao mesmo tempo, cresce a intolerância e outros
vícios comuns às religiões. Isso significa que as igrejas que surgem
não têm feito muito bem o seu papel sempre prometido de levar Deus – que
deveria ser uma coisa boa – às pessoas.
Atualmente vemos um elogio das novas igrejas neopentecostais que
dariam um lugar de reconhecimento ao povo invisibilizado. Alega-se que
aquele sujeito invisibilizado por sua condição de classe tem um lugar de
reconhecimento na igreja que ele procura ao deixar seu posto de
trabalhador ou subtrabalhador. As pessoas abandonadas pelo estado e pela
sociedade encontrariam um lugar na igreja. Aqueles abandonados pelas
igrejas tradicionais também. Quem defende esse tipo de ideia tem toda a
razão, o desamparo faz crescer a religião. Mas é uma razão precária e
perigosa porque rebaixa o sentido do reconhecimento. Um trabalhador
invisibilizado, uma pessoa desamparada, tem que ser reconhecido como
sujeito de direitos e não como um pobre coitado que tem que agradecer ao
sacerdote que vai extorqui-lo por chamá-lo pelo nome e lhe dar um olhar
como esmola.
Pensa-se nesse tipo de teoria na base do sentimento de pena para com
aqueles cidadãos que são rebaixados pelo sistema, e pelo discurso dos
intelectuais que teriam compreendido o sentimento do povo, a pobres
coitados dos quais pelo menos a igreja se ocupa. Ora, a igreja sempre
usa os pobres para ter poder, como um dia usou os indígenas, como usa as
mulheres, como usa as pessoas que sofrem dando-lhes em troca, quando
convém, alguma migalha do seu poder.
Não estou pregando a impiedade, mas pondo em questão que o
“reconhecimento” como categoria política não pode ser usada para fins
perversos. Respeitar o sofrimento e a dor alheia, ou seja, ter
compaixão, não pode ser tratado como mera piedade que só se sustenta
enquanto muitos são rebaixados a pobres coitados.
Deus, um jogo de linguagem
A ideia de um deus único está envolta em muitos jogos de poder. Hoje
em dia sabemos que jogos de poder são sempre jogos de linguagem. Jogos
de linguagem implicam usos da linguagem.
Deus é um assunto que precisa ser analisado também nesse sentido,
como um dispositivo de poder inserido em um jogo de linguagem. Nossa
questão tem que ser “como se usa Deus” em um jogo de linguagem.
Se Deus existe ou não é uma questão falsa usada com fins específicos
de mistificação. Todas as vezes em que alguém que acredita em Deus
pergunta a um outro se ele acredita ou não em Deus, é provável que
espere uma resposta positiva. Sempre me neguei a participar desses
jogos. Todas as vezes em que me perguntaram se acredito ou não em Deus,
preferi analisar a pergunta do que oferecer uma resposta.
Para certos crentes, sobretudo para os fundamentalistas religiosos, a
hipótese de que Deus não exista não é muito boa. Para um crente
fanático, a ideia de que o outro não acredita em Deus é devastadora. O
crente fundamentalista não suporta que outros não acreditem nele. Porque
“seu” Deus não vale para a sua alma, para os fins da sua subjetividade,
mas sim como peça essencial em um jogo de poder no qual se usa a outra
pessoa por meio de Deus. E, ao fazer isso, o que se faz é usar Deus, é
instrumentalizá-lo mais uma vez.
Má fé e ideologia de Deus como abuso
Atualmente, no contexto do mau uso que se faz de Deus, pastores de
igrejas neopentecostais ocupam o poder político no Brasil. Os pastores
parlamentares são, de um modo geral, contrários a todos os avanços
democráticos e aos direitos fundamentais e individuais. Como políticos
muitas vezes são obscurantistas e oportunistas, capazes de desprezar
direitos humanos e minorias e de, ao mesmo tempo, usarem esse espaço de
debate e de poder como sendo sua propriedade.
A bancada evangélica no Congresso brasileiro cresce a cada eleição.
Praticamente não há político, mesmo não sendo evangélico, que não leve
em conta o peso do voto dos fiéis evangélicos em seus processos
eleitorais.
A sustentação do Estado laico deveria ser cuidadosa com a candidatura
e a eleição de líderes religiosos, de sacerdotes em geral, padres,
pastores. Do mesmo modo que funcionários da mídia deveriam ser
inelegíveis já que, de antemão, tem o capital espetacular e midiático
que sempre pode se converter em votos fáceis.
A reflexão sobre a religião – que deve ser levada a sério para ajudar
a diminuir a intolerância religiosa – não deve ser confundida com a
crítica objetiva aos pastores evangélicos que passam a fazer política
partidária e, com ela, buscam mudar os rumos do Estado laico que faz bem
a uma sociedade de religiosidade plural. O que vale para juízes, a
proibição de se dedicar à política partidária com vistas à eleição para
cargos, deveria valer também para quem participa do poder religioso, ele
mesmo, como todo poder, essencialmente político.
A relação entre religião e política implica a instrumentalização de
uma pela outra. Isso quer dizer que os fins religiosos justificam os
meios políticos, e os fins políticos justificam os meios religiosos. A
ética, como reflexão sobre a ação, como preocupação com o outro, é
jogada no lixo da história nesse arranjo.
As teorias e práticas obscurantistas de parcela dos pastores
evangélicos em sua bancada cada vez mais poderosa, têm influenciado
fortemente a mentalidade nacional e tem prejudicado a vida de muita
gente. Mulheres, minorias religiosas, sexuais, étnicas, sem falar nas
minorias de classe exploradas economicamente pelas próprias igrejas,
estão na mira do que se configura como o mal radical realizado em nome
da própria religião. Por mal radical define-se o mal que tem como
objetivo simplesmente fazer o mal contra os outros. Uma espécie de mal
profundo, um mal que se oculta em palavras mistificatórias, que não
deseja a felicidade dos outros, que objetifica o outro como uma coisa, é
disso que estou falando. O fiel é reduzido a alguém que se pode usar,
seja para pagar o dízimo, seja para angariar o voto. O que está em cena é
o mal pelo uso da fé que é a má fé.
Muitas igrejas sempre usaram de má fé para controlar o povo. Ao mesmo
tempo, contam com a boa fé do povo e a manipulam como se as pessoas
fossem incapazes de perceber o que se passa com elas. A isso podemos
chamar de ideologia da fé. A fé usada para enganar, a fé manipulada, a
fé transformada em mercadoria. E Deus servindo a isso tudo como se fosse
um simples fiador. Mas é nisso que ele é transformado.
Se lembrarmos de propostas tais como a da “cura gay” ou do vem sendo
chamado de “Ideologia de Gênero”, a gravidade da questão fica clara. As
falas homofóbicas, os discursos misóginos (a ponto de se chegar a falar
de estupro em potencial), a guerra contra a legalização do aborto como
guerra contra as mulheres, não inova em nada a velha caça às bruxas da
igreja que odeia as mulheres e homossexuais e que odeia a palavra gênero
porque ela é uma palavra que desmistifica, que desmascara, que faz
pensar. O que os pastores evangélicos têm proposto em diversos aspectos é
simplesmente diabólico. Vindo de gente que se diz da fé, a coisa é
ainda mais preocupante.
Essas práticas produzem um evidente controle da vida das pessoas e
pode ser definida como oportunismo ideológico. As igrejas sempre fizeram
isso, não é novidade o que pastores oportunistas das igrejas
contemporâneas do mercado fazem. Apenas reeditam a mistificação e, num
golpe de populismo por ignorância, abusam do povo e, para fazer vingar o
seu abuso, usam Deus como ideologia.
Abusam, portanto, de Deus, mas como Deus não deve existir para elas,
ou existe apenas como mercadoria, não há problema de consciência e eles
seguem praticando o mal.
Márcia Tiburi
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