Minha
religião é a tragédia. Não porque eu creia em Zeus ou Afrodite (neste caso,
quase faria uma exceção ao meu ceticismo, devido a certas mulheres que conheci
ao longo da vida), mas porque tenho certeza de que a tragédia é a forma mais
acabada que o espírito humano encontrou pra descrever nossa condição.
Escrevi
algumas semanas atrás que minha religião é a tragédia. Muitos leitores me
perguntaram o que eu queria dizer com isso. Com o tempo vamos aprendendo onde
nos sentimos em casa (esta é uma forma de felicidade muito sutil para espíritos
ruidosos). A tragédia é uma de minhas casas, talvez a mais "minha" de
todas.
Ao longo
da vida percebemos que as pessoas sofrem, resolvem problemas, fazem escolhas
entre "X" e "Y", enfim, enfrentam a labuta do dia a dia.
Com o tempo, sem saber ao certo a razão, desenvolvi um encanto por essa
capacidade de ação dos meus semelhantes. Hoje, sei que existia nesse encanto
que sentia o reconhecimento de que os seres humanos, na sua infinita batalha
cotidiana, mereciam aquilo que só mais maduro pude saber o que era –eles
mereciam reverência.
Dito nas
palavras que aprendi com Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.): a vida dos seres humanos desperta em
nós, quando olhamos com atenção, "terror e piedade", traços da
tragédia grega, segundo o filósofo.
E, antes
de tudo, meus semelhantes mereciam reverência porque, ao final (um importante
detalhe que logo ficou claro pra mim), sempre perderiam a batalha. A vida ficou
clara na sua "essência" para mim quando, depois de deixar a infância,
entendi que somos como heróis da tragédia: combatemos até o fim, mas sempre
seremos derrotados ao final. Não só a morte enquanto tal, mas as perdas, as
frustrações, as mentiras, os amores impossíveis, dores de todos os tipos.
Evidente
que isso tudo é atravessado por uma profunda beleza e coragem que, às vezes,
assim como que num ato de graça, conseguimos até tocar com as mãos ou sentir
seu perfume. E essas duas, beleza e coragem, que considero irmãs de sangue,
tornam ainda mais evidente o reconhecimento de que os seres humanos merecem
reverência nessa labuta sem fim.
Hoje
reconheço aquilo que para grandes autores como G. W. F. Hegel (1770-1831),
Isaiah Berlin (1909-1997) e John Gray, vivo e em atividade, se constitui num
dos traços marcantes da condição trágica: o fato de, muito pior do que ter de
escolher entre o bem e o mal, sermos obrigados, em muitos dos mais dramáticos
momentos de nossas vidas, a escolher entre o bem e o bem.
Os
utilitaristas na virada do século 18 para o 19 entendiam que a vida humana se
dá por meio de escolhas racionais: escolhemos o bem-estar e não o sofrimento (o
mal para o utilitarismo).
Isso é
apenas meia verdade. Fosse essa a realidade na sua plenitude, não haveria
problema. A verdade é que, muitas vezes, somos obrigados a escolher entre duas
formas de bem em conflito irremediável. Bens materiais x bens imateriais,
fidelidade x paixão, filhos x dedicação à vida profissional, verdade da alma x
verdade do corpo, sinceridade x sobrevivência, enfim, apenas iniciantes
acreditam que o utilitarismo "resolve" o drama moral humano. Gray
chama esse tipo de escolha de "escolha radical", porque ela nos lança
no drama trágico por excelência.
Martin
Thibodeau, no seu maravilhoso "Hegel e a Tragédia Grega",
recém-lançado pela É Realizações, descreve essa mesma condição dizendo que a
vida é trágica porque ela se dá fora de qualquer possibilidade de redenção
metafísica, de qualquer acordo final que possa dar conta da oposição entre
bens, da cisão interior, da negatividade dos fatos e do conflito essencial que
alimenta nossas vidas sem possibilidade de "domesticação".
"The
clash between good and good", nas palavras de Gray, ou "o conflito
entre o bem e o bem", é nosso principal problema moral. Todas as demais
formas de concepção de vida, para mim, estão aquém dessa clareza trágica.
Quando estamos diante de uma escolha dessa, a vida cobra sua conta. Ela cobra
de nós a capacidade de sentirmos terror e piedade de quem sofre tamanha
maldição.
Luiz
Felipe Pondé
(http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/colunaseblogs/luizfelipeponde/2016/07/1790345-o-conflito-entre-o-bem-e-o-bem.shtml.
Acesso em: 12 julho 2016)
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