Em matéria de automóveis, seu raciocínio era o seguinte:
— Para que ter automóvel, se eu não sei dirigir?
E se alguém lhe sugeria que aprendesse:
— Para que aprender, se não tenho automóvel?
Um dia, porém, não se sabe como, escapou de seu sofismático raciocínio e apareceu dirigindo um automóvel. Aprendera a dirigir, só Deus sabe como:
— Fazer o carro andar eu faço. Mas não sei como funciona, nem como é lá dentro. Outro dia ameaçou enguiçar e então me perguntaram se não seria o carburador. Só então fiquei sabendo que meu carro dispõe de um carburador.
O que o encanta principalmente é o poder sugestivo de certos nomes: carburador, embreagem, chassi. radiador, cárter, diferencial.
— Fala-se também numa famosa mola de seguimento, que deve ser muito importante. Para mim não há alternativa: se enguiçar, desço e tomo um táxi. Imagine se eu tiver de ficar dentro do carro indagando: será o dínamo? a bateria, os acumuladores? falta de força no chassi? falta de óleo na bateria?
Tive de adverti-lo de que bateria e acumuladores eram uma coisa só, e que no radiador só se coloca água.
— Eu sei, eu sei: aliás, o meu carro, apesar de novo deve estar com algum defeito no radiador, não gasta água nunca! Todas as vezes que mando botar água o homem diz que não é preciso, já tem. Com o óleo é a mesma coisa. Abrem a tampa do carro e retiram lá de dentro, de um lugar que jamais consegui ver direito onde é. um ferrinho comprido, enxugam o ferrinho, tornam a enfiar e retiram de novo, me mostram a ponta pingando óleo e dizem que não é preciso. Nunca é preciso.
— Você não costuma lubrificar o carro?
— Já lubrifiquei uma vez. Isso é fácil: basta levar o carro no posto e dizer: lubrificação geral, trocar o óleo do cárter. Não me esqueço, por causa daquele detetive dos folhetos do meu tempo, o Nick Cárter.
— Convém não esquecer também a água da bateria. Tem de ser água destilada.
lsto ele também já sabia. Um dia o carro não quis pegar e alguém lhe disse que devia ser a água da bateria. Foi a um posto e mandou que olhassem se tinha água na bateria. Tinha. Então tirem, pediu. O sujeito ficou a olhá-lo como se ele fosse doido: tirar a água? Então ele disse apenas a palavra mágica, que resolve tudo:
— Verifiquem.
Verificaram, enquanto ele aguardava, meio ressabiado. O homem do posto se aproximou, misterioso:
— Elemento seco.
Olharam-se mutuamente, em silêncio, sem que qualquer sombra de compreensão perpassasse entre os dois, esclarecendo os mistérios insondáveis da mecânica dos semoventes. Eis que impenetrável é o desígnio dos motores de explosão e traiçoeira a força dos acumuladores.
— Elemento seco?
Elemento seco! Secam-se os elementos e esotérico se torna o segredo que faz o poderio dos seres vivos no comando das máquinas inertes. Num repente de inspiração divinatória, com a voz embargada do emoção, ele sugeriu:
— Deve ser o giguelê.
Giguelê — palavra mágica que êle um dia ouviu alguém pronunciar, denunciando a existência de uma peça pequenina que não sabe para que serve nem onde fica, mas da qual certamente emana a energia que movimenta os automóveis, num fluxo de divina inspiração como o que movimenta a dança religiosa em torno à diminuta imagem de Exu e outros deuses pagãos.
— No mais — arremata ele — tirante o giguelê, em matéria de automóveis estou com as mulheres. Para elas como para mim um carro se compõe apenas de duas coisas: buzina e volante.
— Para que ter automóvel, se eu não sei dirigir?
E se alguém lhe sugeria que aprendesse:
— Para que aprender, se não tenho automóvel?
Um dia, porém, não se sabe como, escapou de seu sofismático raciocínio e apareceu dirigindo um automóvel. Aprendera a dirigir, só Deus sabe como:
— Fazer o carro andar eu faço. Mas não sei como funciona, nem como é lá dentro. Outro dia ameaçou enguiçar e então me perguntaram se não seria o carburador. Só então fiquei sabendo que meu carro dispõe de um carburador.
O que o encanta principalmente é o poder sugestivo de certos nomes: carburador, embreagem, chassi. radiador, cárter, diferencial.
— Fala-se também numa famosa mola de seguimento, que deve ser muito importante. Para mim não há alternativa: se enguiçar, desço e tomo um táxi. Imagine se eu tiver de ficar dentro do carro indagando: será o dínamo? a bateria, os acumuladores? falta de força no chassi? falta de óleo na bateria?
Tive de adverti-lo de que bateria e acumuladores eram uma coisa só, e que no radiador só se coloca água.
— Eu sei, eu sei: aliás, o meu carro, apesar de novo deve estar com algum defeito no radiador, não gasta água nunca! Todas as vezes que mando botar água o homem diz que não é preciso, já tem. Com o óleo é a mesma coisa. Abrem a tampa do carro e retiram lá de dentro, de um lugar que jamais consegui ver direito onde é. um ferrinho comprido, enxugam o ferrinho, tornam a enfiar e retiram de novo, me mostram a ponta pingando óleo e dizem que não é preciso. Nunca é preciso.
— Você não costuma lubrificar o carro?
— Já lubrifiquei uma vez. Isso é fácil: basta levar o carro no posto e dizer: lubrificação geral, trocar o óleo do cárter. Não me esqueço, por causa daquele detetive dos folhetos do meu tempo, o Nick Cárter.
— Convém não esquecer também a água da bateria. Tem de ser água destilada.
lsto ele também já sabia. Um dia o carro não quis pegar e alguém lhe disse que devia ser a água da bateria. Foi a um posto e mandou que olhassem se tinha água na bateria. Tinha. Então tirem, pediu. O sujeito ficou a olhá-lo como se ele fosse doido: tirar a água? Então ele disse apenas a palavra mágica, que resolve tudo:
— Verifiquem.
Verificaram, enquanto ele aguardava, meio ressabiado. O homem do posto se aproximou, misterioso:
— Elemento seco.
Olharam-se mutuamente, em silêncio, sem que qualquer sombra de compreensão perpassasse entre os dois, esclarecendo os mistérios insondáveis da mecânica dos semoventes. Eis que impenetrável é o desígnio dos motores de explosão e traiçoeira a força dos acumuladores.
— Elemento seco?
Elemento seco! Secam-se os elementos e esotérico se torna o segredo que faz o poderio dos seres vivos no comando das máquinas inertes. Num repente de inspiração divinatória, com a voz embargada do emoção, ele sugeriu:
— Deve ser o giguelê.
Giguelê — palavra mágica que êle um dia ouviu alguém pronunciar, denunciando a existência de uma peça pequenina que não sabe para que serve nem onde fica, mas da qual certamente emana a energia que movimenta os automóveis, num fluxo de divina inspiração como o que movimenta a dança religiosa em torno à diminuta imagem de Exu e outros deuses pagãos.
— No mais — arremata ele — tirante o giguelê, em matéria de automóveis estou com as mulheres. Para elas como para mim um carro se compõe apenas de duas coisas: buzina e volante.
Fernando Sabino
Texto extraído do livro "Quadrante 2", 4ª edição - Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1963, págs.108-110.
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