sábado, 21 de maio de 2016

De como o Brasil não resolve seus problemas

Há sempre duas maneiras de se resolver um problema: — a maneira acertada e a maneira do Governo. Vejamos como se resolve um problema vital para a economia brasileira, por exemplo, o caso do incremento da cultura do xuxú.

Um médico americano descobre que o xuxú contem quantidades fabulosas das vitaminas "x" e "u".

A imprensa, que não sabe bem para que servem as vitaminas "x" e "u" divulga e discute o fato. "Seleções", entre uma historia de esquilo sábio e uma passagem da vida de Houdini, publica um artigo sobre como a vitamina "x" resolveu o problema das inundações do Mississipi e o efeito da vitamina "u" na cura das verrugas. E pronto! Daí por diante, a vitamina "x" e a vitamina "u" são o assunto do dia, nas entrevistas de Hamilton Nogueira na conversa em família da Rádio Globo; nas colunas de "hiperdietética", da Helena Sangirardi, no "Cruzeiro"; no Almanaque do Eu sei Tudo; no Digesto Econômico; no Boletim Semanal da Associação Comercial; nos ônibus, no lotação, na praia, no futebol e onde quer mais que haja alguém disposto a dois dedos de prosa.

Em pouco tempo o xuxú assume as proporções de salvador do mundo, redentor de todas as mazelas, panacéia universal. A essa altura, aparece nos jornais uma noticiazinha tímida de que um médico tcheco da Missão Rockefeller, no Hawai, está empregando nos leprosários um tratamento pelo xuxú. Pouco depois, o Diário da Noite ou a Folha descobre que um farmacêutico de Itapetininga (Estado de São Paulo) há muito tempo vem curando a tuberculose com uma infusão de xuxú, arruda, guiné e mel coado.

E com essa sanção do charlatanismo, o xuxú atinge um ponto máximo de prestígio, até mesmo nos círculos científicos.

Um italiano de Osasco e um português de Jacarepaguá iniciam a cultura do xuxú em maior escala e ganham dinheiro, porque a essa altura o xuxú já está no mercado negro a um conto e quinhentos a dúzia.

Alguns meses depois Vida Doméstica publica o retrato da graciosa filhinha do Sr. Giaccomo Sparafucile, capitalista, honrado comerciante desta praça e líder do comércio varejista de xuxú. Muitos outros italianos, turcos, judeus, alemães, fascistas, nazistas, e até mesmo um ou outro brasileiro filho de italianos, também plantam xuxú, negociam com xuxú, falsificam xuxú e enriquecem, para comprar "baratas Mercury" no mercado negro, para dar gorjetas de 20 cruzeiros ao barbeiro, para comprar aqueles sapatos de três andares que se usam com terno branco de albene e para ir chupar dentes e discutir futebol nas "boites". A lavoura e o comércio do xuxú prospera de forma inesperada; o Banco do Brasil abre uma "Carteira do Xuxú", para financiamento em grande escala; a Secretaria de Agricultura de são Paulo já distribui sementes e mudas de 825 variedades de xuxú e está, no momento, enxertando o xuxú em jaqueira e experimentando hibridização com melancia para aumentar o tamanho do pomo.

O Rôla anuncia uma "Exposição do Xuxú" em Quitandinha e o I.D.O.R.T. organiza a "Semana do Xuxú" e assim se concretiza, depois do sucesso econômico, o sucesso social do xuxú. No último "Sweepstake" Sua Alteza Real, a Princesa Przinkwski, apareceu trajando um lindo "ensemble brique" com aplicações de xuxús.

Fazendeiros derrubam seus cafezais para plantar xuxusais; o Amaral inventa e patenteia logo uma máquina capaz de colher trezentas toneladas de xuxú por hora; um alemão de Santo Amaro, (ex-químico da I.G.Farben) inventa um processo de extrair Coca-Cola do xuxú; um "engenheiro" italiano "ex-técnico da Marelli" apresenta à imprensa as excelências do seu processo de fazer paralelepípedos de xuxú prensado; prevê-se que, com tal maravilha, todas as estradas do Brasil venham a ser pavimentadas com "artigo nacional" superior ao melhor concreto asfáltico. Um turco de São Bernardo consegue aproveitar a raiz do xuxú para fiação e tecelagem, com enormes vantagens sobre a seda italiana.

A essa altura o Observador Econômico já publicou 10 reportagens de 100 páginas cada uma escritas pelo Dimas, sobre a lavoura xuxuseira de São Paulo e adjacências. O xuxú entra para a casa dos milhões: - dá milhões, alimenta milhões, dá trabalho a milhões, serve para milhões de usos. Com ele se pode fabricar: - paralelepípedos, tecidos, goiabada Peixe, marmelada Colombo, geléia de uva, chapéus para senhoras, Parker 51 e até mesmo doce de xuxú. Dele se extraem, como sub-produtos: - Whisky Schenley, Paraty, Coca-Cola, Cerveja Antarctica, leite, álcool de mandioca, cafeína, teobromina, borracha sintética, óleo de caroço de algodão, azeite Bertoli, ácido sulfúrico, Maravilha de Humphreys, soda caustica, sabão Aristolino e âmbar gris.

Os ingleses tentam plantar xuxú na Birmânia, mas sem resultados; os holandeses o levam para a Indonésia, mas o clima é muito úmido; os americanos querem aclimatá-lo no Panamá, mas o clima é muito quente.

Xuxú? Só no Brasil ele medra. O sucesso do xuxú é pleno, absoluto, indiscutível, inabalável, eterno.

A esta altura o Governo intervém. Depois de muitas reuniões das "altas autoridades" e "próceres", decide-se nomear uma comissão para estudar o caso do xuxú".

Para não alongarmos demasiadamente a epopéia do xuxú, vamos omitir as reuniões dessa comissão que duraram 18 meses.

Passamos diretamente à "délivrance" que se consubstancia nas seguintes luminosas deliberações, logo aprovadas "por quem de direito".

1. - Elaboração de um Código do Xuxú.;

2. - Criação do Instituto do Xuxú;

3. - Criação do Conselho Nacional dos Sub-produtos do Xuxú, Anexos e Derivados com a sigla (é imprescindível uma sigla eufônica) C.N.S.X.A.D.

Nomeia-se para a comissão, encarregada de elaborar o Código do Xuxú, o Fulano, porque gosta muito de lidar no jardim, revelando pendores para a agricultura, o Sicrano, porque é amigo do João Daudt, e Beltrano que tem uma bonita caligrafia. A comissão do Código, que não viu jamais um xuxusal, procura, na Biblioteca Nacional a bibliografia a respeito.

Reúnem tudo quanto se escreveu sobre o xuxú, somam, elevam à quinta potência, acrescentam uns palpites do D.A.S.P., articulam, numeram os artigos e parágrafos e está pronto o Código, verdadeira maravilha de 1.200 páginas couché, impresso na Imprensa Nacional! Prevê tudo, desde a cor da gravata que deve usar o plantador de xuxú até o formulário estatístico para o I.B.G.E.!

Depois vem o decreto que cria o Instituto do Xuxú e começa assim: - "...decreta":

Art. 1. - Fica criado o Instituto do Xuxú, que será dirigido por um Presidente, 5 Vice-Presidentes, 4 Secretários-Gerais, 8 Conselheiros, 15 Diretores Assistentes e 1 Assessor Técnico.

Pargf.º 1º - O Presidente terá direito a um "pourboire" de Cr$30.000,00 mensais, automóvel (Packard ou Cadillac), diária, verba secreta, e será de livre nomeação do Presidente da República (a essa altura já se sabe quem será nomeado).

Pargf.º 2º - O Presidente formará o seu "gabinete" que será composto de:

a- 01 Chefe de Gabinete

b- 05 Oficiais de Gabinete

c- 05 Secretários Particulares

d- 10 Secretários para cada oficial de gabinete

e- 40 Sub-secretários

f- 120 Contínuos

g- 300 Sub-Contínuos.

Pargf.º 3º - Dos cinco Vice-Presidentes, um será nomeado por indicação do Joãozinho Daudt, outro por indicação do Lodi, outro por indicação do Simonsen, outro por indicação da Confederação Nacional das Associações Xuxuseiras e, finalmente, o quinto, que será representante dos consumidores de Xuxú, por livre escolha do Presidente.

Pargf.º 4º - O Presidente terá direito ao tratamento de "S. Excia. o Sr. Ministro Presidente do Instituto do Xuxú".

Pargf.º 5º - Os demais Diretores terão direito ao tratamento de Excelência e, quando referidos na 3.a pessoa, serão incluídos no rol de "altas autoridades".

Pargf.º 6º - Nos banquetes terão assento imediatamente após o Ministro da Agricultura, etc.
E seguem-se mais de 1.694 artigos regulando o pessoal, a hierarquia, as honras, os vencimentos, o tamanho dos móveis, a padronização do material, etc., até o Capítulo XXXVIII, onde se lê:
Cap. XXXVIII

FINALMENTE, DO XUXÚ

Art. 1.695 - Nenhum lavrador poderá plantar xuxú sem primeiro inscrever-se como xuxucultor no Registro de Xuxucultores do Instituto do Xuxú, pagando a taxa módica de Cr$10,00 pela inscrição.

Art. 1.696 - Os xuxucultores inscritos nos termos do art. 1695 terão direito a:

1.º - isenção de impostos federais, estaduais e municipais;

2.º - financiamento de Cr$ 30.000,00 por hectare plantado;

3.º - assistência técnica de xuxuólogos do Instituto;

4.º - transporte gratuito para toda a produção;

5.º - uma assinatura anual da revista do Instituto, intitulada "O Xuxú";

6.º - receber todas as publicações do D.I.P. e do D.A.S.P.;

7.º - uma entrada gratuita em cadeira de orquestra para o Teatro Recreio;

8.º - abatimento de 10% nas compras feitas n '"A Exposição" e no Dragão da Rua Larga, em frente ao qual fica a Light.

Art. 1.697 - Para inscrição no Registro de Xuxucultores o candidato deverá requerer ao Presidente, sobre selos de Cr$ 7,80 federal e Cr$ 0,75 de Educação e Saúde, com firma reconhecida, juntando os seguintes documentos:

a - certidão de nascimento;

b - prova de quitação com o serviço militar;

c - atestado de residência;

d - carteira de saúde;

e - folha corrida da polícia;

f - carteira de identidade;

g - certidão de casamento do avô, do pai e própria, se for casado e mais a certidão de óbito da mulher, se for viúvo; se for solteiro deverá o candidato apresentar prova de seu estado civil;

h - se for estrangeiro, apresentar Segunda via da carteira modelo 19;

i - atestado de boa conduta, passado pelo Prefeito do Município e pelo Delegado do Distrito da residência;

j - certidão negativa de impostos federais, estaduais e municipais;

k - prova de sindicalização;

l - títulos de propriedade do imóvel e certidão do respectivo registro;

m - atestados de vacina contra tifo exantemático, varíola, febre amarela, raiva, mordedura de cobra, etc...

Aqui deixamos de parte o famoso Código do Xuxú, para acompanhar a sorte de um imprudente candidato que resolveu ser xuxucultor com todos os sacramentos e vantagens da lei. Suponhamos que ele seja um lavrador de um município de São Paulo, filho de italianos. Ele se chama Pedro S. Torello e todo mundo o conhece pôr esse nome e com esse nome ele comprou as terras que cultiva e com esse nome paga os impostos. Como não sabe ler nem escrever corretamente, procura um despachante ou um advogado, para tratar dos papéis. A primeira dificuldade está em que ele foi registrado pelos pais com o nome de Pietro, mas, depois, principiou a usar, patrioticamente, o nome de Pedro. É preciso, portanto, em primeiro lugar, fazer uma justificação em juízo, com três testemunhas, para provar que Pietro é Pedro. Para isso ele necessita requerer, sobre selos, com firma reconhecida, "arranjar" as testemunhas, pagar as custas de cartório, etc., Tudo isso demora um mês e custa cerca de Cr$500,00.

Para obter o segundo documento, que é a prova de quitação com o serviço militar, ele também precisa requerer à Circunscrição do Recrutamento, com firma reconhecida, juntando certidão de cidade, retratos, etc. E isso também demora três ou quatro meses, na melhor das hipóteses, mas ainda precisa a chamada para "jurar à bandeira".

O terceiro documento, atestado de residência, também só se obtêm mediante requerimento, sobre estampilhas, com firma reconhecida e atestado de três comerciantes passados sobre estampilhas, com firma reconhecida, etc. Depois vem a carteira de saúde, que também é preciso requerer com requerimento selado, firma reconhecida, etc, etc.

E assim vai. A esta altura o candidato já gastou Cr$5.000,00 e já perdeu 60 dias de trabalho, em peregrinações entre o escritório do despachante e os guichês de protocolo. Já esperou, horas e horas, que o funcionário terminasse a discussão sobre futebol, para informar "por onde andam os papéis"...

...Só então nossa heróica vítima percebe que não é negócio ser xuxucultor e desiste do registro. Vende as terras, compra um sapato de três andares, um terno branco de albene e vai ser intermediário de xuxú, porque é mais "folgado" e dá dinheiro "pra xuxú".

Não existe Pedro, nem o Instituto do Xuxú, mas tudo isso rima muito bem com a forma como se resolvem os problemas brasileiros.


Auricélio Penteado
, paulista, dotado de forte veia satírica, trocou a popularidade que certamente lhe daria o jornalismo por outras atividades mais práticas. Foi fundador do IBOPE, no Brasil, iniciando em nosso meio as sondagens de opinião pública, nos moldes do Instituto Gallup, dos Estados Unidos. Desligando-se do IBOPE, dedicou-se à publicidade. Algumas de suas sátiras contra os excessos burocráticos e a falsa tecnocracia brasileira tiveram grande repercussão, como a que apresentamos, publicada originalmente na revista "Publicidade e Negócios". Embora longa, para nossos padrões, é uma obra prima.


Extraído da "
Antologia de Humorismo e Sátira", Editora Civilização Brasileira - Rio de Janeiro, 1957, pág. 407. Textos selecionados por R. Magalhães Jr.

OBS: Foi mantida a grafia constante do texto original.

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