...Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a cada dele, e é.
Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem
- pois nunca morou antes em ninguém
nem jamais lhe puseram rédeas nem sela
- apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo:
come às vezes na minha mão.
Seu focinho é úmido e fresco.
Eu beijo o seu focinho.
quando eu morrer,
o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito.
a menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave.
Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome
ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai.
se ele fareja e sente um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e ai.
Aviso também que não se deve temer seu relinchar:
a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera,
a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez.
Clarice Lispector
Fonte: aqui
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