(ilustração: Julie Paschkis)
Um velho clichê diz que violão é o instrumento mais fácil
de tocar e mais difícil de tocar bem. (Violão porque é o que eu toco; imagino
que qualquer músico já ouviu dizer isso a respeito do seu instrumento.) Eu
diria que inventar histórias de improviso é a coisa mais fácil de fazer e a
mais difícil de fazer bem. Em rodas de conversa com amigos já pratiquei a nobre
arte de começar uma história meio sem pé nem cabeça, depois de dois minutos
dizer para o cara ao lado: “Agora vai tu”, e cada um ir adicionando seu trecho
e passando adiante.
(Digressão: esse sistema é o que em inglês chamam de
“round robin”, uma criação coletiva com cada autor pegando a história onde o
outro larga. Existe na FC e no romance policial, por escrito, não improvisado.
Os surrealistas franceses gostavam de improvisar histórias, poemas ou
narrativas de sonhos em voz alta. Um dos meus contos preferidos de Conan Doyle
é “Cipriano Overbeck Wells, mosaico literário”, onde numa alucinação meio
machadiana o narrador vê-se cercado de autores como Jonathan Swift, Bulwer-Lytton,
Walter Scott, Daniel Defoe e outros, improvisando em “round robin” uma história
para ele.)
Fazer de improviso é mais difícil se o cara for se
preocupar com aspectos que já são complicados no texto escrito: coerência do
enredo, originalidade da idéia, riqueza de descrições, profundidade
psicológica... Não, uma história inventada em voz alta deve ir se jogando para
a frente sem saber o que vem depois, e a imagem que me vem à cabeça é um macaco
saltando de galho em galho, largando-se de um galho forte que se enverga e o
arremessa como uma catapulta bem no meio da copa de outra árvore onde
por certo não faltará com o quê se pegar. Assim vai o narrador de improviso.
Já improvisei muita historinha para meus filhos na hora
de dormir, a única regra era que não podia ficar bolando sinopse meia hora
antes. Eu só me permitia pensar na história depois de pronunciada a fórmula
mágica do Era uma vez. Depois disso
eu olhava em torno, via a janela aberta e dizia: “Um dia, o Macaco vinha
andando pela floresta de noite e viu de longe uma janela acesa, num lugar onde
ele nunca tinha visto casa nenhuma”. O que vem depois não sei, mas qualquer
coisa pode se encaixar aí.
Escrever assim (porque isso faz parte de escrever) requer
certas precauções. Me lembro muito das histórias que Tia Adiza contava para a
gente, mais de meio século atrás, nesse mesmo ritual de botar pra dormir. Ela
vinha com umas histórias bem concatenadas, que eu acho que eram menos
improvisadas do que exumadas da memória. E de vez em quando aparecia algo como:
“Aí o Rei mandou prender o rapaz no calabouço, os guardas
jogaram ele no porão, fecharam o alçapão lá no alto e botaram uma pedra em
cima. O rapaz ficou preso. Mas certa hora ele ouviu um barulho na grade.” “Que
grade, tia?” “Oi, não falei na grade
não? Num canto do porão tinha uma portinha baixa, gradeada, que dava pro lado
de fora!”
Elementos narrativos brotavam assim, do-nada, de acordo
com as conveniências do herói, e dela. Eu já ficava com medo de imaginar a
cena, porque podia haver uma porção de elementos deus ex machina que ela estava vendo e eu não. “Aí o rapaz ia
caminhando pelo descampado, aí se deitou pra descansar. Foi quando ele ouviu um
tropel, lá vinha um touro furioso, imenso, correndo pra cima dele?” “Eita, tia, e o que foi que o rapaz fez?”
“Ele subiu correndo na árvore! Oi, não falei na árvore não? Era uma mangueira
bem alta...”
Quem está inventando em voz alta precisa dessa cara de pau.
Quem escreve, não. Quando ele perceber que faltou informação prévia ao leitor
(que não aceita ouvir falar pela primeira vez em algo quando nesse algo repousa
todo o peso de uma cena), ele pode voltar atrás quanto espaço for necessário
para “plantar” a informação sobre a gradezinha ou a mangueira. De preferência,
dando-lhe um contexto que não sugira de que maneira será utilizada a seguir.
Se o fluxo principal da história for atraente, o ouvinte
perdoa muita coisa, perdoa que a moça seja loura numa cena e morena na outra,
como as mulheres fatais de Buñuel, perdoa que um táxi ou uma carruagem que o
herói deixou esperando por ele estejam à sua espera até hoje após o fim do
livro, perdoa que o herói tente alcançar seus objetivos da maneira mais
tortuosa quando com duas manobras poderia resolver tudo. O ouvinte-leitor sabe
e sente que, se fosse assim, não haveria história. Ele aceita as maiores
inverossimilhanças, desde que estas tornem a história mais vívida, e não menos.
Os melhores filmes de Hitchcock se baseiam nesse tobogã narrativo onde cenas
implausíveis se sucedem da maneira mais emocionalmente plausível que se possa
imaginar.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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