domingo, 15 de maio de 2016

Teoria do desconhecimento




Sob o império dos editores, os originais são tratados, hoje, como objetos de adestramento e de medição
 
Na época da paginação, do enquadramento e da edição, todos tentam chegar a um formato ideal para o romance. Gênero, por definição, além dos gêneros, o romance se contrai, se “educa” — na verdade se esvazia. Sob o império dos editores, os originais são tratados, hoje, como objetos de adestramento e de medição. Nessa época aflitiva, reencontro uma crônica que Clarice Lispector publicou no Jornal do Brasil no sábado, 22 de agosto de 1970. Tinha 50 anos de idade: já era a consagrada autora de romances como A paixão segundo GH, de 1964, e A maçã no escuro, de 1961.

A crônica leva um título ao mesmo tempo sugestivo e irônico: O “verdadeiro” romance, as aspas como ressalva. Começa Clarice: “Bem sei o que é o chamado verdadeiro romance. No entanto, ao lê-lo, com suas tramas de fatos e descrições, sinto-me apenas aborrecida”. Logo em seguida, ela se defende: “Quando escrevo não é o clássico romance. No entanto, é romance mesmo”. Clarice sempre escreveu movida pelo “senso de descoberta”. Não pretendia cumprir fórmulas, adequar-se a padrões, seguir exigências comerciais, enfim adaptar-se. Ao contrário: via o romance como um instrumento de libertação.

Em sua crônica, ela reafirma a impossibilidade de seguir esquemas e de atender a exigências editoriais. “Nunca escolhi linguagem”, diz. “O que fiz, apenas, foi ir me obedecendo.” O que faria um editor contemporâneo diante dos originais de Água viva? Seu primeiro impulso seria, por certo, ordenar o que não suporta ordem. O que é, em princípio, resultado da desordem. Alguns, por certo, a considerariam uma escritora “impublicável”. Desejariam editar seus textos e organizar seu pensamento. Tentariam domá-la — mas, caso conseguissem, Clarice deixaria de ser Clarice.

Enquanto escrevia, Clarice dizia seguir em si mesma “o que não passa de uma nebulosa”. A decifração do obscuro é sua estratégia romanesca. Escrever um romance não é cumprir um gênero, mas arriscar-se a sucessivas e desconcertantes descobertas. Em suas crônicas para o JB, ela reafirma não se considerar uma escritora. Muito menos uma erudita, ou uma intelectual. Seus romances não são, portanto, a aplicação de ideias pré-concebidas, ou de teses antes duramente elaboradas. Clarice vivia e escrevia no presente. Afirma guiar-se pela intuição e não pelo intelecto. Suas narrativas não podem, em consequência, ser enquadradas em tendências, ou em escolas. Apesar de admiração declarada por escritores como Lúcio Cardoso e Katherine Mansfield, não é possível falar em influências. A solidão de Clarice é profunda.

A partir do desconhecimento, construiu uma obra ímpar e que até hoje nos espanta. Uma obra que coloca em questão toda a literatura comercial que hoje prolifera nas livrarias.

Estranha técnica

Caminhando em direção contrária ao pragmatismo atual, Clarice escrevia movida por uma estranha técnica da “não compreensão”. É não compreendendo, e entregando-se ao tumulto das perguntas, que ela avança em seus relatos. “Não, positivamente eu não me entendo”, ela escreve na mesma crônica. Aproximada da cegueira, a literatura se torna não uma “aula“ — não a exposição detalhada de uma tese, ou de uma hipótese —, mas um tipo mundano de adivinhação. É curiosa a maneira como Clarice se surpreende consigo mesma. “Bem, fui escrevendo ao correr do pensamento e vejo agora ter me afastado tanto do começo que o título desta coluna já não tem nada a ver com o que escrevi. Paciência”. Nos parágrafos finais, em vez de pensar o romance, e arrastada pelo fluxo desordenado das ideias, Clarice reflete sobre sua atração pelos sofismas. Ou seja, pelos argumentos que não são verdadeiros, embora pareçam. Ou, podemos pensar: pelos romances que, organizados e bem acabados, apenas parecem “verdadeiros”, mas não passam de bem feitas escritas de encomenda, onde a literatura abdica daquilo mesmo que a define: a insegurança.


No dia 29 de maio do ano seguinte, no mesmo JB, Clarice nos oferece outra crônica em que desenvolve o mesmo tema. Máquina escrevendo é o título. Não é ela, Clarice, quem escreve, pretende nos dizer, mas a máquina. “Sinto que já cheguei quase à liberdade”, começa. “A ponto de não precisar mais escrever. Se eu pudesse, deixava meu lugar nessa página em branco: cheio do maior silêncio.” Cada vez mais introspectiva e mais fascinada pelo vazio, ela já não se sente uma “cronista”. Não ao estilo clássico, à moda de Rubem Braga, que ela sempre admirou. Deixa de lado os protocolos e as intenções literárias para falar diretamente ao leitor. É franca: “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma”. Um pouco mais à frente, contudo, ainda faz um esforço para se situar: “Não entra em gênero. Gêneros não me interessam mais. Interessa-me o mistério”.

Novamente, Clarice declara seu desprezo pelos estratagemas e pelas maquinações de estilo. Declara seu desinteresse pela própria literatura, enquanto objeto à parte no mundo, enquanto instituição. Seu interesse tem outras direções. Relembra então a história de uma amiga que, hospedada numa casa, abriu a geladeira da cozinha para beber um pouco d’água. “E viu a coisa.” Viu o quê? Uma coisa muito branca que, ”sem cabeça, arfava”. Descreve: “Assim: para baixo, para cima, para baixo, para cima”. Num susto, a amiga fechou a porta e desistiu da água. Só depois veio a saber que o dono da casa praticava caça submarina e pescara uma tartaruga. “E lhe tirara o casco. E lhe cortara a cabeça. E pusera a coisa na geladeira para no dia seguinte cozinhá-la e comê-la.” Enquanto não era comida, a tartaruga, ou o que dela ainda restava, “arfava como um fole”.

Lembrou-se Clarice que as tartarugas são répteis raros e antigos, que apareceram há 200 milhões de anos, muito antes dos dinossauros. Extintos os dinossauros, as tartarugas sobreviveram “com sua forma estranha e sem beleza”. Talvez aqui se guarde uma definição não só para o que Clarice chamava A Coisa — o Isso, o “it”, foram muitos os nomes. Mas para sua própria concepção de literatura. Diante do réptil, Clarice constata que o ponto de partida para compreender alguma coisa deve ser: “Não sei”. A partir do desconhecimento, construiu uma obra ímpar e que até hoje nos espanta. Uma obra que coloca em questão toda a literatura comercial que hoje prolifera nas livrarias. E que recoloca a literatura em seu verdadeiro lugar de pergunta e espanto.

JOSÉ CASTELLO

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros. Vive em Curitiba (PR).

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