Li há muitos anos um conto italiano ou francês,
ambientado no tempo antigo, em que o protagonista pega um cabriolé para ir a
tal lugar. Ele desce, pede ao cocheiro que fique esperando, há um contratempo,
ele foge, é perseguido, viaja, passam-se semanas ou meses, não lembro mais. O
conto é cheio de coisas que não lembro mais. Só lembro (olha as ironias da
literatura!) o parágrafo final, onde ele diz algo como: “Tudo resolvido, voltei
à minha cidade e fui até a estação. O homem do cabriolé continuava à espera.
Perguntei quanto era, ele disse que eram 900 mil francos. Dei-lhe uma nota de
um milhão e falei que ficasse com o troco.”
Não é um conto propriamente realista, é de algum autor
como Papini ou Apollinaire. Mas o fato do autor lembrar do cocheiro que ficou à
espera aquele tempo todo traz de volta uma questão crucial da narrativa. Até
que ponto um autor deve amarrar todas as pontas soltas de uma história? E precisa
mesmo, esse rigor todo?
Manuais de escrita nos dão o tempo todo conselhos nessa
praia. “Se o personagem pedir alguma coisa no bar, lembre-se de fazer com que o
garçon acabe trazendo.” Sim, são dicas úteis. Cada vez que você faz isso a
narrativa ganha maior espessura. Dois caras pedem sanduíches e começam a
conversar. Se o diálogo é interessante (e afinal de contas é para mostrar esse
diálogo que a cena foi concebida e escrita, ou filmada) ninguém lembra mais dos
sanduíches. Mas quando eles são trazidos, fumegantes e apetitosos, isto dá ao
espectador uma sensação maior de realidade. Ele percebe fugazmente que, durante
a conversa, algo (a preparação dos sanduíches) estava acontecendo na cozinha.
Ou seja, há coisas acontecendo de verdade em torno daquele diálogo, o mundo não
pára, o mundo é de verdade e está funcionando em volta daqueles dois
personagens. Perceber isso dá mais
solidez à cena e à história.
O manual diz: “Deixou o táxi esperando, volte e pague. Ou
guarde o motorista para aparecer, impaciente e furioso, como elemento
resolvedor irrompendo em outra situação qualquer.” Sim, sempre é bom deixar
acontecimentos pendurados. No famoso conto de Fernando Sabino “O Homem Nu” o
protagonista, de manhã cedinho, avisa a esposa que se baterem na porta não
atenda, é o cobrador das prestações da TV. Ele sai, nu, para pegar o jornal que
estava no corredor do prédio, e a porta do apartamento bate. Ele chama. A
mulher pensa que é o cobrador da TV e não abre. Depois de ser surpreendido e
passar por mil peripécias, perseguido pelos vizinhos, ele consegue voltar para
o apartamento, arrasado. Quando está explicando tudo à mulher, batem na porta.
“É a polícia!” diz ele, e vai abrir. “Não era. Era o cobrador de televisão.” Li isso com 11 anos e lembro até hoje.
Vem daí talvez o velho conselho de Raymond Chandler para
a narrativa de pulp fiction: “Quando não souber o que fazer com a cena, faça
alguém entrar na sala de arma em punho.” Em histórias de crime há sempre alguém
perseguindo alguém, alguém querendo silenciar uma testemunha, querendo
recuperar um objeto roubado, querendo se vingar de uma chantagem, etc. A narrativa policial hardboiled é sempre uma história de ação em que as ações dos
personagens tendem mais a ser interrompidas do que a chegar ao fim sem sobressaltos.
Essa “amarração de pontas” precisa ser feita se o autor
acha que o leitor vai lembrar do taxista que ficou esperando, ou do fone
deixado fora do gancho, ou da chaleira com água posta a ferver, ou de Fulano
que foi ao banheiro e não voltou a participar da reunião. Às vezes o autor
indica cada um desses pequenos fatos com tanta ênfase que o leitor,
inconscientemente, anota: “Ôpa, tem coisa aí.”
Quando depois o autor passa em branco, ele se sente meio desacorçoado. A
melhor solução talvez seja dizer esses detalhes (se não são significativos) meio
“en passant”, sem lhes dar muita importância.
Veja-se este exemplo:
“Quando acordei, desci para tomar o café da manhã na
lanchonete. Sentei numa mesa, pedi café e sanduíche e comecei a ler o jornal.
Nenhuma novidade, mas na página policial havia uma notícia sobre um carro igual
ao meu encontrado pela polícia. Paguei e saí às pressas, fui direto para a
delegacia.”
No
trecho acima, o autor não diz que o café chegou, não diz que chegou a comer
alguma coisa. Mas quando ele diz “paguei”, vemos que tudo isso aconteceu, e que
esse minúsculo episódio foi encerrado. Se ele dissesse apenas “Saí às
pressas...” daria a impressão de que o café não foi trazido, ou foi consumido
mas não foi pago. Escrever, mesmo sem pretender grandes voos literários, é
escolher o tempo todo o que precisa ser dito e o que não precisa.
Bráulio Tavares
Mundo Fantasmo
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