Rebuscadíssima, a letra do nosso
hino nacional foi escrita por Joaquim Osório Duque Estrada (1870-1927); a
melodia foi composta por Francisco Manuel da Silva (1795-1865). Como se vê, os
coautores do nosso hino não se conheceram.
Para muita gente, a dificuldade se
manifesta logo no início da letra, escrita em ordem mais do que indireta. Vou
direto ao ponto: tente encaixar na melodia os dois primeiros versos, mas
dispostos na ordem direta. Talvez seja melhor dizer que a ordem direta seria
esta: "As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um
povo heroico". Sim, foi isso que você cantou a vida inteira, talvez sem
saber que é essa a ordem direta e, portanto, talvez sem saber o que significam
os dois versos iniciais do hino.
E por que me referi ao hino
nacional? Razões (muitas) para isso certamente não faltam. Poder-se-ia falar
dos manifestantes pró e contra, que sempre entoam o hino nacional, talvez como
prova de que são eles os verdadeiros patriotas ou de que a razão está com eles
etc.
Poder-se-ia também falar dos tempos
da ditadura militar, quando cantávamos o hino nacional com a vã esperança de
escapar da violência policial nas manifestações por liberdade, democracia etc.
Aliás, a julgar pelo que fazem hoje as PMs de governos estaduais dos mais
diversos matizes "ideológicos", poder-se-ia concluir que a ditadura
militar não acabou. Com hino e tudo, a borracha fala mais alto, com o
beneplácito de governos "democráticos".
Mas o mote é outro. Como domingo é
Dia das Mães, lembrei-me desta passagem, também escrita na ordem indireta:
"Dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada, Brasil". Não é
preciso muito esforço para perceber que, na ordem direta, a passagem "Dos
filhos deste solo és mãe gentil" passaria a "És mãe gentil dos filhos
deste solo". Tente encaixá-la na melodia e diga-me o que ocorreu. Não deu
certo, deu?
Deixo com você a reflexão sobre a
afirmação da letra de que a nossa pátria é mãe gentil dos filhos deste solo. É
mesmo gentil essa mãe com a maior parte dos seus filhos?
Cabe aqui outra reflexão: a letra
diz que a pátria é mãe. Você já parou para pensar no "paradoxo" que
há na combinação "pátria/mãe"? Se recorrermos à etimologia, veremos
que "pátria", que vem do latim, é da mesma família de
"pai", "paterno", "paternidade" etc.
Os mais maledicentes talvez digam
que nem juntando pai e mãe a pátria amada consegue ser gentil com boa parte dos
seus filhos...
Na sua antológica canção
"Língua", Caetano Veloso diz assim: "A língua é minha pátria, e
eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria"... Genial, não? Acho
que não é preciso explicar os versos, certo?
Encerro com alguns versos do
belíssimo poema "Para Sempre", de Carlos Drummond de Andrade:
"Morrer acontece / com o que é breve e passa / sem deixar vestígio. / Mãe,
na sua graça, / é eternidade. / Por que Deus se lembra / mistério profundo / de
tirá-la um dia? / Fosse eu Rei do Mundo, / baixava uma lei: / Mãe não morre
nunca, / mãe ficará sempre / junto de seu filho / e ele, velho embora, / será
pequenino / feito grão de milho".
Entre a mãe que, para mim, desde
sempre não existe (aquela do hino) e a mãe exaltada por Drummond (a minha, a
sua, a de muita gente), fico com a segunda. É isso.
Pasquale Cipro Neto
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