O que Minas Gerais e Pernambuco têm em comum? Grandes poetas, é uma resposta possível. Um deles, o mineiro Murilo Mendes, andava relegado aos sebos e esquecido pelos editores.
Ao lado de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, Murilo forma o quarteto dos poetas brasileiros fundamentais do século 20 (e empata em 2 x 2 o jogo entre Pernambuco e Minas).
Agora, a CosacNaify começa a relançar a obra completa de Murilo. Dizem os críticos que ele começou modernista e terminou concretista (morreu em 1975, em Lisboa).
Mas foi mais que tudo um inconformista sistemático, um inventor de palavras e um cristão místico e erótico, que transitava com humor e alegria dos santos e padres da Igreja aos seios de Jandira (por onde o mundo começava, ele dizia) . Ou seja, um sujeito difícil de acomodar num escaninho.
Murilo e João Cabral tinham uma grande afinidade: gostavam de falar de coisas concretas. O pernambucano reconheceu que aprendera com o mineiro a “dar precedência à imagem sobre a mensagem, ao plástico sobre o discursivo”. Uma lição poética.
“Sua poesia me ensinou que a palavra concreta, porque sensorial, é sempre mais poética do que a palavra abstrata”, dizia João Cabral. “A função do poeta é dar a ver (...) o que ele que dizer, isto é, dar a pensar”.
Tinham também diferenças. Cabral era materialista, Murilo um católico reconvertido na idade adulta. Cabral proclamava ser indiferente à música; Murilo admirava Mozart sobre todas as coisas (diz a lenda que, ao saber da notícia da ocupação de Salzburgo, na Áustria, pelo exército nazista, ele enviou a Hitler um telegrama de protesto em nome do compositor, nascido lá).
De volta às afinidades, Cabral deu a ver poeticamente, como ele gostaria, os rios do Recife; Murilo, nascido junto ao Paraibuna, em Juiz de Fora, curtia rios.
Cabral lembra, em poema do livro Agrestes, que o amigo tinha um ritual próprio para saudar os rios que encontrava em suas muitas viagens pelo mundo. É inútil tentar parafrasear João Cabral; melhor reproduzir simplesmente o poema.
Murilo Mendes - Foto Google
Murilo Mendes e os rios
João Cabral de Melo Neto
Murilo Mendes, cada vez que
de carro cruzava um rio,
com a mão longa, episcopal,
e com certo sorriso ambíguo,
reverente, tirava o chapéu
e entredizia na voz surda:
Guadalete (ou que rio fosse),
o Paraibuna “te saluda”.
Nunca perguntei onde a linha
entre o de sério e de ironia
do ritual: eu ria amarelo,
como se pode rir na missa.
Explicação daquele rito,
inte anos depois, aqui tento:
nos rios, cortejava o Rio,
o que, sem lembrar,
temos dentro.
É hora de voltar a ler Murilo Mendes e cortejar o Rio que temos dentro.
Armando Mendes é jornalista
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