domingo, 12 de outubro de 2014

Atirar a primeira pedra

A violência é experimentada, provocada e sofrida no dia a dia das pessoas das mais diversas formas. Na prática, a violência é algo banal, ou seja, é comum e partilhada. O que chamamos de “violência simbólica” está entre nós entrelaçada de um modo perigoso com a violência física. Isso quer dizer que nos atos físicos de violência de gênero, raça, idade, classe social, há sempre violência simbólica. Na base de instituições nas quais o autoritarismo (Estado, Justiça, Escola, Família, Igreja) define o rumo dos atos de opressão e submissão de pessoas em geral, a violência simbólica diz respeito à compreensão da própria violência: a ideia do que seja violência define a violência possível. Daí que alguns se sintam autorizados, seja a xingar, seja a fomentar o ódio na TV ou até mesmo nas redes sociais da internet.
 
A agressividade verbal é uma forma conhecida de violência simbólica. Fofoca e difamação também fazem parte desta violência que se faz com palavras e atos de fala, mas em uma escala que não parece tão perigosa na maior parte dos casos. Falar é fazer, mas pensamos pouco nesse fato.
 
Quando a violência da fala chega à comunicação que, em escala institucional, atinge o que chamamos de “mídia”, o perigo se intensifica. Temos ouvido e visto jornalistas com amplo espaço na televisão falar de modo agressivo e irresponsável em gestos de claro fomento ao ódio. Rachel Sheherazade não é o único, embora seja o mais curioso dentre os exemplos, à prática midiática do ódio. Podemos pensar que ela extrapola os limites éticos, mas aquilo que ela faz é estabelecer elos com a “voz” de muitas pessoas. Isso quer dizer que as “asneiras” pronunciadas em público tem nexo direto com aquelas que são pronunciadas em casa, na esfera da vida privada. Daí o lugar especial em nossa cultura contemporânea de plataformas como facebook – onde qualquer um faz-se de “formador de opinião” – que estremecem os limites do privado e do público. Ali o que se diria em escala privada é dito em escala pública com a leviandade de quem pensa não estar sendo visto. Como se o que é dito não tivesse nada demais em ser dito.
 
Uma violência pouco impressionante
 
É menos impressionante xingar do que caluniar, e menos grave caluniar do que espancar e menos ainda espancar do que matar. Mas há uma continuidade entre os atos de fala e as violências físicas, porque nossos atos são efeito do que pensamos. Nossos atos de fala provocam efeitos subjetivos e objetivos. Podemos pensar que todos somos capazes de fofoca, de maledicências e, bem pagos, alguns seriam capazes até de fazer jornalismo sem ética ou coisas do tipo. Até que ponto vai a capacidade de praticar violência? Essa é uma pergunta que devemos nos fazer hoje em dia.
 
Aquele que fomenta verbalmente a violência trabalha na formação da violência simbólica. Como fez Sheherazade ao incitar à morte daquele que, segundo sua epistemologia, chamou de “marginalzinho”. Aquele que pensa assim, fala assim, também é capaz de fazer o que diz porque, de certo modo, já “faz” o que diz.
 
Pelo simples fato da banalização da violência, há quem pense que também está autorizado a matar. Os diversos casos de violência ao nível da barbárie vividos no Brasil nos últimos tempos nos confrontam com uma sociedade que não se preocupa com a própria violência. Neste campo entram os meios de comunicação controlando o modo de pensar e, portanto, de agir das pessoas.
 
Sabemos que a destruição da sociedade se dá na destruição da subjetividade das pessoas. Cada um deve ser aniquilado como pessoa, ou seja, precisa ter perdido a si mesmo para poder sentir que a vida do outro não vale a pena e que deve ser aniquilada de qualquer modo. Ele se entrega ao ato de atirar a primeira pedra porque está iludido de que a sua vida pode valer alguma coisa.
 
Não há futuro para uma sociedade cujo pensamento comum é este. Não há futuro em uma sociedade cujo pensamento comum nasce na televisão fascista.

 
 
Marcia Tiburi
 

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