Em sua casa de Santiago do Chile, conhecida como “La Chascona” _ ou “A Descabelada”, em homenagem aos cabelos desgrenhados de sua terceira mulher, Matilde Urrutia _ o poeta Pablo Neruda mandou construir uma passagem secreta, ainda hoje oculta atrás de uma cortina da sala de jantar. Através dela, Neruda tinha o hábito de despontar na sala, subitamente, vestido de marinheiro ou de cigano, para divertir os amigos que o esperavam para a ceia. O gosto pelas armadilhas e pelas falsificações não foi, porém, um atributo exclusivo do poeta chileno. É muito tênue a fronteira entre a criação e o disfarce. Poetas se desdobram em outros homens, vestem máscaras sutis, saem de si para escrever. Mostram-nos, enfim, que percebemos apenas uma parte da realidade. Revelada a outra parte, a primeira, por contraste, parece falsa.
A história de Neruda me ocorre enquanto leio "Parte da paisagem", livro de poemas de Adriana Lisboa (Iluminuras). Surge-me, em particular, na leitura de um poema, “Nada consta”, em que a poeta diz: “As coisas vão bem, de modo geral/ disfarçadamente bem. Peruca, bigode postiço,/ identidade falsa”. Mais à frente, dando outros detalhes, Adriana continua: “Os hematomas se camuflam com/ roupas, lenços, maquiagem”. Enquanto escreve, o poeta trabalha, apenas, com uma parte do que é. Só uma parte da paisagem se revela, enquanto a outra, que se esconde, sustenta o poema, emprestando-lhe o caráter de armadilha. Poemas são ciladas _ e, por isso, é sempre com grande cuidado que devemos lê-los. São engenhos para capturar partes da vida, sabendo que outras partes se mantêm ocultas. Ao leitor cabe trafegar entre o dito e o não-dito. Entre o explícito e o oculto. Uma longa manta _ como o véu de Isis _ encobre as palavras.
O livro de Adriana Lisboa se abre com versos do poeta norte-americano W. S. Merwin: “aparentemente acreditamos/ nas palavras/ e através delas”. O jogo das aparências sustenta o que chamamos de realidade. Mesmo na mais límpida paisagem, há algo a escavar _ há uma parte que se mantém em segredo e que só em um mergulho (“através”) se revela. Sugere Adriana: “Pense na poesia/ como o dedo cavando a fresta onde/ há ainda uma pequena chance”. A palavra serve “só enquanto testemunha/ da própria ineficiência”. A palavra não mostra, mas _ rasgando a paisagem ao meio _ se limita a sugerir. “Use da palavra apenas/ seu grau de sugestão de vida”. É com visões parciais e ideias inconclusas que um poeta trabalha. Não só o poeta: todos nós. Não devemos desprezar essa limitação: ela é, a rigor, o que chamamos de vida.
Por isso mesmo, porque mexe com o imperceptível, criar não é fácil. Quase sempre preferimos ficar com o que já conhecemos. “Em geral/ somos os bichos domesticados que você e/ os de sua geração tanto temiam”. Quando nos deparamos com um poeta _ Adriana Lisboa _, porém, essas precauções se desfazem. Ao escrever, o poeta desafia seu leitor: “você nunca/ ficou sabendo a que país eu pertencia”. Ainda assim, é preciso entregar-se, é preciso acreditar. “A nossa outra chance/ mora na cartola de um mágico”, escreve Adriana. E especifica: “No país que há dentro da cartola,/ essa nação de coisas honestas/ e sem astúcia”. Só confiando nas palavras atravessamos a paisagem partida da poesia. Nela, algo se esconde não para nos destruir, ou nos prejudicar, mas para nos assombrar.
Por não aceitar explicações simplistas _ aquelas que “explicam tudo” _ o poeta está sempre a dizer “não”. Escreve Adriana: “Dizer não até/ a náusea”. Negar-se ao amor sem glória “em que só os condenados insistem”. Exigir a sombra e o desconhecido _ exigir garantias de que há um caminho pela frente. O poeta é um ser da penumbra. Seus escritos lutam contra a clareza assassina. Contra aquilo que “pior: se demonstra,/ como num laboratório, como no corpo/ aberto de uma cobaia”. Vivemos em um mundo devassado, um mundo completamente exposto, com raras chances de recolhimento e de gradação. “O quanto você não daria/ por um instante de penumbra./ Por um segundo de indecisão”. Em uma realidade na qual tudo parece decidido, a poesia _ que é casulo e paisagem vista só em parte _ ainda pode nos oferecer isso. Ainda nos dá a chance, como Adriana sugere, de encontrar o necessário. “Você queria que as palavras/ fossem simples e poucas”, ela escreve. Palavras essenciais _ ainda que encobertas pelo invisível.
A poesia desafia nossas crenças mais arraigadas. Relativiza e agita nossas certezas _ disfarça-se. Nela, “algo/ acontece em segredo, e o cerco/ da neblina em torno das velhas convicções”. Trabalha com a incerteza _ o que parece amedrontador em um mundo de homens cheios de si. Trabalha com a dúvida _ em um universo que parece completamente devassado. O véu da poesia insiste em disfarçar parte do que, na verdade, não podemos ver. A poesia de Adriana Lisboa se ergue, assim, contra a violência dos princípios e das regras. Aponta sempre para uma rachadura, uma falha, essa precariedade essencial que, ela nos mostra, nos transforma em “tristes sapiens”. Sabemos que não sabemos _ e isso fere nossa arrogância. Isso dói, mas também nos faz viver. Mais ainda: isso leva a escrever.
Adriana faz, por fim, uma defesa do recato. Opõe-se à formalidade, que enrijece e sufoca. “Que não haja sustos, digestivos,/ última unção, que não haja impacto/ ou rima. Que o fim das contas seja/ ao fim e ao cabo de um recato absoluto/ de uma seriedade sem adornos”. Diante da paisagem que se esquiva e que só se revela pela metade, ao poeta resta a simplicidade para ver. A seriedade para abster-se e respeitar. Adriana nos dá assim uma breve lição de poesia _ estranha lição sem instruções e sem advertências, que é só sugestão e entrega. Uma poesia que não teme o parcial. Que não se esquiva das coisas que desconhecemos e que ela, com forças limitadas, não pode ter. É bela essa paisagem parcial, mas fértil, que a poeta nos oferece. Luz e sombra. Presença e ausência. Movimento e estagnação. Tudo em constante mudança, uma deliciosa armadilha. Como a vida, enfim, se disfarça e avança.
José Castello
(Texto publicado no suplemento "Prosa" de O GLOBO no sábado 04-10-14)
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