Tenho certeza de que inventaram esse negócio de Dia dos Pais, Dia das Mães, Dia dos
Namorados e assemelhados com o exclusivo propósito de atanazar o juízo do grupo,
numeroso porém desprezado, em que me integro, ou seja, o dos que acham essas datas apenas
ocasiões para exercícios de sadomasoquismo e solapamento da já combalida estrutura
familiar. Sei de dezenas e dezenas de namoros acabados e casamentos atormentados porque um
infeliz se esqueceu de uma dessas datas. (As infelizes, curiosamente, não costumam
esquecer-se — deve ser algum golpe delas; está fora da moda, mas mandam os antigos
não menosprezar o Eterno Feminino, os antigos sabiam das coisas.) Eu mesmo só lembrei
que hoje é Dia dos Pais (escrevo com cruel antecedência, é bom sempre observar) porque
andei folheando uma agenda.
Queridos confrades, pais, que nos espera
hoje? As possibilidades são infindas, mas há categorias em que a maior parte pode ser
enquadrada, sob diversos critérios. Penso primeiro (dei muito para pensar em velho
ultimamente, bandeira grande) nos avôs, que, como as avós, reúnem todas as forças para
não meter a mão na cara do centésimo sujeito que o chama de "pai duas vezes",
achando que está fazendo um comentário original e engraçadíssimo. E, claro, com
heróicas e escassíssimas exceções, os dessa faixa já chegaram ao doloroso estágio em
que todo mundo manda, menos eles, e muito menos neles mesmos.
— Vô, vamos almoçar fora em sua
homenagem. Aonde o senhor quer ir?
— A uma churrascaria. Uma
churrascariazinha, há muito tempo que não vou.
— Churrascaria? Mas nunca! O senhor
já se esqueceu do colesterol, esqueceu a angioplastia? O senhor não se quer bem, mas
nós queremos bem ao senhor!
— Então por que perguntam?
— É porque hoje é seu dia,
paizão, é tudo para seu bem-estar e felicidade.
Claro, vão levá-lo ao restaurante de
não-fumantes em que servem saladas de aspecto malevolente e onde vão deixar —
fantástica colher de chá, tudo para a felicidade dele — que ele tome um copinho de
vinho, daquele branco doce que a Eulália, sua nora mais carinhosa, adora. E virão os
brindes, todos sublinhando, com inquietante ênfase numa convicção obviamente falsa, os
muitos e muitos outros dias dos pais que ainda se celebrarão na companhia do homenageado.
E, na seqüência de tributos que lhe serão prestados, consentirão que fique na sala
até a hora do "Sai de baixo", pois normalmente é forçado a ir dormir depois
do "Fantástico", não só porque o médico aconselhou, como porque, e
principalmente, a velha (que fuma e dorme na hora em que quer) tem ciúme das pernas da
Marisa Orth.
Quanto às ganas de pisotear e jogar no vaso o
celularzinho indecifrável que lhe deram, passam logo no dia seguinte e ele dá o celular
ao neto, o que, aliás, era o verdadeiro objetivo do presente.
Sejamos igualmente solidários para com
os pais separados. Normalmente, domingo já é dia de pai separado sair com os filhos, a
maior parte comendo apaixonadamente pizza fria e indo a lugares de cuja existência jamais
tomaria conhecimento, se não fosse pai separado.
Pai junto pode bocejar e dizer ao moleque
que vá pastar, vá surfar ou vá para um quarto acusticamente isolado, caprichar no
progresso de sua surdez heavy metal. Mas pai separado tem gravíssimos encargos,
notadamente se se filia à escola entusiástico-companheirona, que implica risos alvares,
gritos de "vamos lá, filhão!", trajes grotescos, músculos e juntas aos
frangalhos, papos de homem para homem em que o homem acaba sendo o filho e pedidos
gaguejantes a senhoras desconhecidas, para que levem a filha ao banheiro feminino. Para
não falar nos presentes, todos escolhidos a dedo pela ex-mulher entre tudo o que ele não
gosta, preferivelmente algo que o presenteador exija que ele use na hora, como um par de
óculos escuros de boiola e um walkman vermelho e azul, do tamanho e peso de uma bateria
de automóvel.
Os prejuízos para as finanças
familiares são às vezes consideráveis. Um amigo meu festejou durante um mês a
excursão à Europa, para ele e a patroa (sozinho não tem graça e, embora tenha tido que
passar a maior parte do tempo em lojas e ouvindo comentários sobre como Florença
realmente é uma bela cidade, mas enche o saco logo e o comércio é péssimo, não chega
aos pés de Miami, conseguiu, afinal, viajar para fora do país), para em seguida
descobrir a chegada dos carnês de pagamento da agência de turismo, todos em seu nome, é
claro. Claro, sim, ele tinha dinheiro guardado, a vida é curta, por que se privar de um
sonho só para conservar os trocados da velhice? E ele não reclamou, tem umas duas
músicas compostas e vai ver se descola uma vaga no Retiro dos Artistas.
De minha parte, sofro grandes
sobressaltos com os anúncios de televisão, principalmente os dos aparelhos de ginástica
(venho murchando a barriga com afinco desde que me lembraram a chegada do dia de hoje,
espero escapar) e, nas raras vezes em que o controle está sob meu controle, mudo de
canal. Mas é a velha paranóia, na verdade não tenho muito o que temer. Vou ganhar uma
bermuda e um par de sandálias, se bem que minhas camisas de ir à Academia "estão
uma vergonha" e talvez eu receba novos instrumentos de estrangulamento parcelado.
Nada como a alegria do Dia dos Pais. Pelo menos quando se é dono de shopping ou
churrascaria, imagino eu.
João Ubaldo Ribeiro
Texto extraído do livro “O Conselheiro Come” Editora Nova Fronteira
– Rio de Janeiro, 2000, pág. 163.
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