Um atônito leitor escreve para compartilhar o espanto que sentiu
ao ver que os nossos dois mais importantes dicionários divergem quanto ao
adjetivo referente aos EUA: o Aurélio registra só estadunidense,
enquanto o Houaiss prefere estado-unidense.
Ora, se a essência do dicionário é descrever o atual estágio de nosso idioma,
como é que a descrição desses dois autores não é idêntica, neste caso? A
resposta, meu caro, aponta para um princípio fundamental da lexicografia,
desconhecido de muitos, e que poderá causar surpresa, desânimo ou até
indignação entre os leitores menos informados: por mais que o dicionário se
esforce por fazer uma descrição objetiva e imparcial da língua, suas páginas
estão repletas de julgamentos,
crenças e preconceitos do seu autor.
A variedade de informações é gigantesca: além do simples
significado do vocábulo, o dicionário registra também a sua grafia, a sua
pronúncia, o gênero a que pertence (masculino ou feminino), a sua flexão, a
separação de sílabas, a existência de formas variantes, o nível sócio-cultural
em que o vocábulo é empregado, e outras mais. O lexicógrafo procura registrar
democraticamente tanto o velho quanto o novo, tanto o solene quanto o
coloquial, tanto o geral quanto o regional — mas não consegue ocultar, a cada
linha, a cada verbete, a sua posição pessoal sobre aquilo que está descrevendo.
Houaiss registra tanto cotidiano quanto quotidiano como formas perfeitamente aceitáveis;
ao colocar, porém, a definição do vocábulo junto a cotidiano (enquanto em quotidiano há apenas uma simples remissão
à outra forma), ele está declarando sua preferência. Se Aurélio coloca, entre
parênteses, a indicação “(é)” junto ao vocábulo grelha,
é porque essa é a pronúncia que ele prefere (embora, com imparcialidade, indique,
no final do verbete: “É corrente, em boa parte do Sul do Brasil, a pronúncia de grelha com e fechado”). E assim por diante:
a cada passo, o autor é obrigado a tomar decisões, o que significa dizer que
dicionários como o Houaiss ou o Aurélio não são descrições neutras e objetivas
de nossa língua, mas sim o conjunto de preferências lingüísticas do cidadão Houaiss ou do cidadão Aurélio. Portanto, tudo que
está no dicionário é opinião — é claro que é uma opinião abalizada,
de profissionais que dedicaram sua vida ao estudo das palavras, mas não deixa
de ser opinião.
Os lexicógrafos sabem que podem coexistir, num mesmo momento
histórico, diferentes comportamentos lingüísticos que os falantes cultos consideram aceitáveis, o que vai dar,
para quem deseja escrever corretamente, uma razoável margem de escolha. Essas
diferentes soluções convivem umas com as outras e disputam a nossa preferência;
são incontáveis as situações em que podemos optar entre duas
formas corretas. Um rápido passeio pelo Houaiss e pelo Aurélio nos mostra que é livre a escolha entre abdômen
ou abdome, gérmen ou germe, regímen ou regime (as formas sem o n são
mais modernas); atenazar ou atazanar, destrinçar ou destrinchar (a primeira forma de cada par é a
variante mais culta); amígdala ouamídala, óptico ou ótico, seção ou secção; catorze
ou quatorze, quota ou cota; monstrengo ou mostrengo (preferida
por Houaiss); taberna ou taverna, assobio ou assovio (as formas com B têm mais prestígio); bêbado ou bêbedo, hemorróida ou hemorróide; cosmos ou cosmo, bílis ou bile, diabete ou diabetes, húmus ou humo. Também podemos
escolher entre incontinente (Houaiss), incontinenti (Aurélio 2ª edição, a última em vida do autor)
ou incontinênti (Aurélio-XXI);
entre álcoois (Aurélio-vivo e Houaiss)
ou alcoóis (Aurélio-XXI); entre o
clitóris (Aurélio-vivo) ou a
clitóride (Aurélio-XXI) — Houaiss fica em cima do muro, dizendo que a
clitóride é “a
forma mais correta, mas a menos usada”. Aurélio-vivo e Houaiss preferem malformação, Aurélio-XXI enquanto o prefere má-formação.
Para minha surpresa, os dois Aurélios dão balde como
feminino, enquanto Houaiss dá como masculino.
Podemos decidir, ainda, se vamos escrever marcha à ré (Aurélio-vivo) ou marcha
a ré (Aurélio-XXI e Houaiss ), pôr-do-sol (ambos os Aurélios)
ou pôr do sol (Houaiss) — e por aí vai a valsa.
Usando a conhecida (mas eficiente) analogia entre linguagem e
vestimenta, o dicionário é um grande magazine onde estão expostas todas as
peças de vestuário existentes; há peças íntimas, peças formais, peças
descontraídas, peças exóticas, peças chamativas, peças discretas, peças
indecentes — e, assim como as palavras, podemos escolher as que mais nos
agradam. A soma de nossas escolhas — seja nas roupas, seja nas palavras — é o
que costumamos chamar pelo nome clássico de estilo.
Cláudio Moreno
(professor universitário de língua portuguesa, escritor)
(Disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/sualingua/2009/05/05/dicionario-nao-e-lei.
Acesso em: 18 novembro 2016.)
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